No início deste mês entrou em vigor a Lei 14.181/2021, que prevê regras de prevenção ao superendividamento dos consumidores ao mesmo tempo em que cria a possibilidade de negociação entre devedores e credores.
As medidas foram estabelecidas a partir de alterações feitas no Código de Defesa do Consumidor (CDC). Elas também oferecem instrumentos para conter a prática de abusos na oferta de crédito, especialmente a pessoas idosas e vulneráveis.
A lei, aprovada pela Câmara e o Senado e sancionada pelo presidente Jair Bolsonaro, passou a levar em consideração a impossibilidade manifesta de o consumidor (pessoa natural), de boa-fé, pagar a totalidade de suas dívidas de consumo sem comprometer seu mínimo existencial, para sair do chamado superendividamento.
Entre as diversas medidas, a regra torna direito básico do consumidor a garantia de práticas de crédito responsável, educação financeira e de prevenção e tratamento de situações de superendividamento, preservando as suas condições de vida.
Também prevê como nulas cláusulas contratuais de produtos ou serviços que limitem o acesso ao Poder Judiciário ou impeçam o restabelecimento integral dos direitos do consumidor e de seus meios de pagamento depois da quitação de juros de mora ou de acordo com os credores.
Junto a isso, obriga bancos, financiadoras e empresas que vendem a prazo a informar ao consumidor o custo efetivo total, a taxa mensal efetiva de juros e os encargos por atraso, o total de prestações e o direito de antecipar o pagamento da dívida ou parcelamento sem novos encargos.
As ofertas de empréstimo ou de venda a prazo deverão informar ainda a soma total a pagar, com e sem financiamento.
A lei também proíbe propagandas de empréstimos do tipo “sem consulta ao SPC” ou sem avaliação da situação financeira do consumidor e o assédio ou a pressão sobre consumidor para contratar o fornecimento de produto, serviço ou crédito, principalmente em caso de idosos, analfabetos, doentes ou em estado de vulnerabilidade.
O dispositivo legal permite que o consumidor informe à administradora do cartão de crédito, com 10 dias de antecedência do vencimento da fatura, sobre parcela que está em disputa com o fornecedor. O valor não poderá ser cobrado enquanto não houver uma solução para a disputa.
Paralelamente, prevê, a pedido do consumidor superendividado, o processo de repactuação das dívidas com a convocação de todos os credores. Na audiência, o consumidor poderá apresentar plano de pagamento com prazo máximo de cinco anos para quitação.
Em razão de todas essas implicações, o titular da Superintendência para Orientação e Defesa do Consumidor de Mato Grosso do Sul (Procon-MS), Marcelo Salomão, fala sobre os reflexos da lei na vida dos consumidores.
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CORREIO DO ESTADO – desde o início deste mês, temos a vigência da Lei 14.181/2021, que muda pontos do Código de Defesa do Consumidor. Entre outros itens, ela dispõe sobre a prevenção e o tratamento do superendividamento. Como isso pode ser feito?
MARCELO SALOMÃO – a lei inseriu novos princípios a serem atendidos pela Política Nacional de Relações de Consumo, quais sejam: fomento de ações direcionadas à educação financeira e ambiental dos consumidores e de prevenção e tratamento do superendividamento, como forma de evitar a exclusão social do consumidor.
Instituiu instrumentos como mecanismos de prevenção e tratamento extrajudicial e judicial do superendividamento, proteção do consumidor e de núcleos de conciliação e mediação de conflitos oriundos de superendividamento.
Neste sentido, a prevenção e o tratamento do superendividamento serão feitos seguindo as normas incluídas no Código [de Defesa do Consumidor], que dispõe, como dito, sobre a prevenção do superendividamento da pessoa natural, crédito responsável e educação financeira do consumidor.
E sobre a conciliação e a repactuação das dívidas?
Segundo a nova legislação, o consumidor também pode repactuar as suas dívidas, que poderão ser pagas em até cinco anos. O acordo não pode comprometer a renda do devedor em mais de 65%, garantindo assim a sobrevivência mínima e proporcionando às partes limites de conciliação.
Pela nova lei, quem pode se considerar um superendividado para valer-se dessas medidas?
Nos termos da lei, superendividado é aquele consumidor que, de boa-fé, não tem possibilidade de pagar a totalidade de suas dívidas decorrentes de relações de consumo, exigíveis e vincendas, sem comprometer seu mínimo existencial.
A quem o devedor poderá se dirigir em busca da renegociação de suas dívidas? O Procon é um caminho para isso, com o Judiciário?
O devedor poderá se dirigir ao Judiciário. O juiz, com o requerimento do consumidor, poderá instaurar processo de repactuação de dívidas, sendo designada audiência conciliatória, presidida pelo mesmo magistrado ou por conciliador credenciado no juízo, com a presença de todos os credores.
O devedor poderá, ainda, se dirigir ao Procon, que também possui, nos termos da legislação, competência concorrente e facultativa para promover conciliação administrativa, sem prejuízo das demais atividades de reeducação financeira cabíveis.
No caso da escolha pela via judicial, isso poderá ser feito por intermédio da Defensoria Pública?
No caso da via judicial, o requerimento do devedor poderá, sim, ser feito por intermédio da Defensoria Pública, desde que atendidos os requisitos legais.
Que tipo de dívida está excluído de uma possível conciliação no superendividamento?
As novas normas protetivas não se aplicam às dívidas contraídas mediante fraude ou má-fé, oriundas de contratos celebrados dolosamente ou as que decorrerem de aquisição ou contratação de produtos e serviços de luxo de alto valor.
Igualmente, excluem-se do processo de repactuação de dívidas, ainda que decorrentes de relações de consumo, as dívidas provenientes de contratos de crédito com garantia real, de financiamentos imobiliários e de crédito rural.
Em que condições as dívidas poderão ser repactuadas? Prazo, por exemplo?
O consumidor apresentará proposta de plano de pagamento com prazo máximo de cinco anos, preservado o seu mínimo existencial.
O plano judicial compulsório assegurará aos credores, no mínimo, o valor do principal devido, corrigido monetariamente por índices oficiais, sendo a primeira parcela devida no prazo máximo de 180 dias, contando de sua homologação judicial, e o restante do saldo será dividido em parcelas mensais iguais e sucessivas.
O credor poderá se recusar a uma repactuação? Neste caso, quais serão as consequências?
Caso qualquer credor não compareça à audiência de conciliação injustificadamente, a exigibilidade do débito será suspensa. Os encargos de mora serão interrompidos e ocorrerá a sujeição compulsória ao plano de pagamento da dívida, se o montante devido ao credor ausente for certo e conhecido pelo consumidor.
Além disso, esse credor ausente somente receberá após ter sido feito o pagamento dos demais credores que compareceram à audiência conciliatória.
Por outro lado, não havendo conciliação, o juiz, a pedido do consumidor, instaurará processo por superendividamento, com a finalidade de revisão e integração dos contratos e repactuação das dívidas, mediante plano judicial compulsório, que assegurará aos credores, no mínimo, o valor principal devido corrigido monetariamente por índices oficiais de preço.
Na prática, quais são os efeitos dessa repactuação? O devedor terá, por exemplo, excluído o seu nome dos cadastros de restrição?
O plano de pagamento deverá conter: medidas de dilação de prazos de pagamento e de redução dos encargos da dívida ou da remuneração do fornecedor, entre outros, destinados a facilitar seu pagamento; referência à suspensão ou à extinção das ações judiciais em curso; data a partir da qual será providenciada a exclusão do consumidor de bancos de dados e cadastros de inadimplentes; e condicionamento de seus efeitos à abstenção, pelo consumidor, de condutas que importem no agravamento de sua situação de superendividamento.
Em quanto tempo o consumidor terá o seu nome limpo junto aos órgãos de proteção, após entrar com o processo de repactuação das dívidas?
A regra é clara. Após o pagamento da dívida ou da primeira parcela do acordo, a empresa credora tem cinco dias úteis para retirar o nome do consumidor do banco de dados da Serasa. A empresa também precisa entregar ao cliente um recibo ou comprovante de que a dívida está quitada.
Qual a garantia de que esse mesmo consumidor, após a repactuação aprovada, não voltará a contrair novas dívidas?
O consumidor deverá ter o forte propósito de se abster de condutas que agravem sua situação financeira. Até porque constará no plano de pagamento o condicionamento da repactuação à abstenção pelo consumidor de condutas desfavoráveis à sua condição de superendividado.
No seu entender, qual será o efeito disso para comércio e serviços de um modo geral?
Considerando o quantitativo de consumidores endividados/superendividados e a necessidade de se implementar ações, no âmbito da defesa do consumidor, que visem ao atendimento multidisciplinar para proteger e auxiliar o consumidor a reestruturar sua situação socioeconômica e a reeducar a relação de consumo saudável no contexto social, econômico, planejando seu orçamento familiar.
O efeito da alteração ao CDC trazida pela Lei do Superendividamento será muito favorável, já que, a curto prazo, trará a dignidade de volta aos credores/consumidores, que poderão voltar ao mercado de consumo, e, a longo prazo, resultará em uma sociedade mais educada financeiramente, que pratica o crédito responsável, não caindo mais em “ciladas” impostas pelos fornecedores de créditos.