O filme com o título, “Adeus Lênin”, com sua simplicidade, prova que se pode fazer uma obra consistente, profunda e bonita, com poucos recursos financeiros e técnicos. A trama de seu enredo é aparentemente simples: nas vésperas da queda do Muro de Berlim, que concretizou a falência do socialismo marxista, certa mãe de família, “comunista de carteirinha”, tem um ataque cardíaco e entra em coma. Nove meses após, volta à consciência num universo totalmente metamorfoseado: Dormiu num regime comunista, pleno de controles e carências, e acorda “naquela confusão” resultante da quebra de fronteiras e de um regime que se acreditava onipotente, dono do futuro da história e do destino das pessoas. Uma ruína catastrófica, para o espírito de muitos.
O filho de nossa “bela adormecida”, pouco mais que um adolescente, se preocupa e duvida da capacidade da mãe em assimilar as mudanças e aceitar a ruína do sistema no qual tinha uma crença religiosa. Temendo por sua incolumidade física e psíquica, com auxílio da família, se empenha em acobertar os fatos e fazer uma releitura dos acontecimentos, de modo a enganar a percepção da mãe sobre a realidade para, assim, protegê-la. Chegou-se à hilária situação de forjarem um noticiário televiso, mostrando a população de Berlim Ocidental derrubando o Muro e fugindo em massa para o paraíso comunista... Eis que, num momento em que o filho responsável pelo embuste encobridor deu uma cochilada, a mãe se levanta do leito, sai para a rua e ... “cai na real”, vendo inclusive uma imensa estátua de Lênin, transformada em sucata, sendo transportada. Há uns dramas paralelos e, como se previa, o choque da realidade foi demais e, logo após, nossa personagem morre.
Muitos enfoques poderiam analisar a obra, mas este escriba resolveu privilegiar uma visão psicológica sobre a mesma, sem pretender que essa seja “a grande leitura” a ser feita. Mas vamos pois: É comum, nas fábulas e mitos, um personagem ser “dividido” e apresentado como “dois”. Por isso, nos contos de fadas, há sempre uma bruxa e uma fada. Ambas representariam momentos diferentes da percepção que a criança tem da mãe: “fada”, quando satisfaz, acolhe e “bruxa” quando frustra, rejeita. A obra “o médico e o monstro”, de Robert L. Stevenson é outro exemplo de “cisão” encontrado na literatura, para mostrar aspectos diferentes que compõe uma mesma personalidade.
Voltando ao nosso filme, podemos interpretar que a “mãe-frágil-protegida” representaria nosso “Ego” ameaçado e o “filho-protetor” seria a “negação”, ou seja, um dos “mecanismos de defesa do ego”, justamente aquele artifício que usamos para não entrarmos em contato com uma realidade externa muito dolorida. Vemos essa dinâmica quando dormimos e o nosso mundo reprimido, aproveitando-se do cochilo de nossas defesas, irrompe na forma dos sonhos amalucados e que nos assustam, mas que conseguimos esquecer. Neste caso, o que nos assusta está em nosso mundo interno, mas também somos ameaçados pelas ocorrências externas, principalmente pelo significado simbólico das mesmas e em função de nossas características individuais, nosso narcisismo ou ego mais fragilizado. Assim, quando idealizamos alguém ou uma doutrina e essa “idealização-paixão” nos serve de muleta na vida, nenhum fato consegue nos fazer ver qualquer realidade que destrua “nosso ídolo”.
Um exemplo significativo de “negação” ou autoengano, constatamos quando Krutchov, primeiro ministro russo, denunciou os crimes do stalinismo, deixando comunistas de todo o mundo perplexos. Entretanto, quem não sabia daqueles crimes? Em que planeta viviam nossos marxistas que, de quebra, volta e meia iam à metrópole do grande império e não entravam em contato com a perversa realidade do “paraíso soviético”? Creio que esse encobrimento da realidade tenha sido uma das grandes manifestações de “negação coletiva” e autoengano já vistas na história, igualando-se à negação que o povo alemão fazia das barbáries do nazismo, como o holocausto. “Ninguém” sabia...
Salvo melhor juízo, “Adeus, Lênin” será sempre muito atual, pois, se há um esporte popular entre os humanos de quaisquer épocas, é justamente a evitação da realidade, naquilo em que ela desmente as crenças e ideologias que nos servem de muleta, assim transformando nossos ídolos em sucatas. Afinal, como abandonar a doce crença de que seríamos mais sábios que outros mortais, donos do futuro, condutores da história e, então, olharmos o outro de igual para igual? Você aguenta, companheiro?
Valfrido M. Chaves Pantaneiro, Pós-Graduado em Políticas e Estratégia Adesg/Ucedb - [email protected]