Artigos e Opinião

OPINIÃO

João Ricardo Dias de Pinho: "Carga tributária em xeque"

Professor do IBET, doutorando e mestrando pela PUC-SP

Redação

30/09/2015 - 00h00
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No xadrez o jogador que vê seu rei em posição de xeque sacrifica uma peça para não ser vítima da jogada fatal: o xeque-mate. No tabuleiro fiscal essa sempre foi a opção dada ao contribuinte, que novamente se vê encurralado pelo fisco. Querem passar a conta da crise fiscal para seu colo. ‘Não tem outra saída, o aumento de tributos é inevitável’ dizem os especialistas em contas públicas.

Esse argumento, quase terrorista, é a ameaça de xeque-mate que sempre convenceu o contribuinte a ceder. Essa ameaça não assusta mais. Tal qual um animal selvagem domesticado, que, de súbito, dá conta de sua natureza, o contribuinte deu conta que o Estado deve servir-lhe e não o contrário. Resolveu arriscar tudo, se o xeque-mate for a próxima jogada, não tem problema; afinal, o jogo já perdeu a graça há um bom tempo.

E foi assim, flertando com o caos, que a sociedade brasileira, inesperadamente, inverteu as peças do tabuleiro e colocou as autoridades institucionais em xeque. Nunca antes no Brasil o desejo de aumentar a carga tributária foi tão fortemente reprimido. Uma janela foi aberta, e ela deve ser aproveitada.

Adotando um viés pragmático, o aumento imediato da carga tributária poderia ser admitido se associada à reformulação estrutural do nosso sistema. Assim, a sanidade das contas públicas seriam, no curto prazo, socorridas, e no longo prazo fruiríamos dos efeitos dessa reformulação, que poderia começar com:

(i) maior transparência fiscal, pois não se pode admitir, por exemplo, julgamentos secretos no âmbito da Receita Federal e demais tribunais administrativos tributários, principalmente quando se exige, após a Medida Provisória no 685/2015, que o contribuinte escancare suas estratégias tributárias a esse órgão federal;

(ii) calibração dos excessos em torno do princípio da supremacia do interesse público sobre o privado, esse preceito constitucional festejado na Constituinte de 1988 criou uma cultura de proteção à ineficiência do Estado Fiscal; estão aí as intermináveis e eternamente prorrogáveis dívidas de precatório e os privilégios processuais, dos quais o Estado usa e abusa, principalmente quando gerido por agentes inescrupulosos que, cientes da lentidão do sistema jurisdicional, criam arbitrariedades tributárias na certeza de que a conta será paga por outro;

(iii) simplificação da legislação tributária, com a unificação das diversas contribuições sociais e substituição gradual do ICMS, ISS, IPI, PIS/COFINS pelo IVA-Nacional;

(iv) mudança da matriz tributária, de forma a alterar a perversa predominância da tributação sobre o consumo que, entre outros fatores deletérios, afeta com maior vigor a receita das camadas mais pobres. Isso pode ser feito dando maior protagonismo à tributação da renda e do patrimônio. É verdade que essa medida começou a tomar corpo com a proposta, por parte da União, de aumentar o Imposto de Renda sobre o Ganho de Capital (IR) e, por parte dos Estados, incluindo Mato Grosso do Sul, de aumentar o Imposto de Transmissão Causa Mortis e Doação (ITCD). Mas não pode parar nisso, o aumento deve ser compensado com a redução da tributação sobre o consumo, que, se dificilmente ocorrerá nesse momento, pode muito bem ficar condicionada à volta do crescimento econômico.

Sem medidas dessa natureza o aumento da carga tributária será mais um achaque à cidadania fiscal, pois se a festança dá prejuízos todos são aclamados a pagar a conta, se sobra algo no fundo do pote ninguém propõe diminuir o preço do ingresso.

editorial

Violência contra a mulher e ações efetivas

Setores nostálgicos da sociedade ainda pregam o retorno a um modelo em que a mulher era silenciada, confinada ao lar e privada de voz pública

13/06/2025 07h00

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O mais recente Mapa da Segurança Pública, divulgado nesta semana pelo Ministério da Justiça, trouxe novamente um dado alarmante: o Estado de Mato Grosso do Sul continua figurando entre os líderes do ranking nacional quando o tema é violência contra a mulher. Trata-se de uma repetição trágica que vem se confirmando ano após ano, sem que haja sinais de uma reversão estrutural. Os números são um reflexo doloroso de uma realidade que exige, com urgência, uma abordagem séria, objetiva e comprometida por parte das autoridades.

O enfrentamento da violência contra a mulher exige mais do que discursos bem-intencionados. Ele exige dados, precisão nas políticas públicas e, sobretudo, vontade política. A primeira e mais óbvia necessidade é garantir que os agressores sejam punidos com rigor. Não por desejo de vingança, mas por um princípio essencial do Direito Penal: a punição eficaz tem função pedagógica e dissuasória. Onde há impunidade, há incentivo ao crime. Onde há resposta firme do Estado, há limites sendo reafirmados.

Mas a efetividade da lei não se mede apenas pela quantidade de anos previstos em uma pena. A lei só é respeitada quando é aplicada de forma real, rápida e visível. Isso requer mais do que papel e tinta — requer fiscalização, presença ostensiva, estrutura e recursos humanos preparados. Tudo isso custa dinheiro. E mais que isso: custa tempo, comprometimento e esforço coordenado entre o Executivo, o Judiciário, os órgãos de segurança e os sistemas de proteção social.

A verdade incômoda é que, sem vontade política clara e corajosa para enfrentar os agressores de mulheres, os números continuarão altos. Não se pode permitir que casos de violência sejam tratados com negligência ou relativismo, como se fossem apenas conflitos domésticos ou “questões privadas”. A omissão do poder público e da sociedade civil, em qualquer nível, é cúmplice da perpetuação da violência.

Além da resposta penal, há um desafio ainda maior: o da transformação cultural. É preciso romper com a cultura da subjugação das mulheres, que ainda encontra espaço em muitos setores da sociedade. Não adianta o Estado fazer campanhas sobre respeito e igualdade se, ao mesmo tempo, líderes religiosos ou comunitários reforçam discursos que colocam a mulher em posição de inferioridade. A sociedade precisa decidir, coletivamente, qual papel deseja dar às mulheres — e essa decisão deve ser baseada em igualdade, dignidade e liberdade.

É verdade que os tempos mudaram, e que hoje há mais autonomia feminina do que em décadas passadas. No entanto, setores nostálgicos da sociedade ainda pregam o retorno a um modelo em que a mulher era silenciada, confinada ao lar e privada de voz pública. Essa nostalgia que não respeita a autonomia da mulher — muitas vezes romantizada como “valores da família” — precisa ser encarada como parte do problema, e não como solução.

Reduzir a violência contra a mulher no Mato Grosso do Sul e no Brasil é possível. Mas isso exigirá ação efetiva, punição exemplar aos agressores, investimento público contínuo e coragem para enfrentar costumes nocivos à diginidade das mulheres ainda presente nas instituições e no cotidiano. Não há caminho mais curto — nem mais necessário.

ARTIGOS

Caetano canta música evangélica e o erro estratégico de setores progressistas

10/06/2025 07h45

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A cena é recorrente nos shows de Caetano Veloso: após sucessos consagrados de seu repertório, o artista entoa a canção “Deus Cuida de Mim”, do pastor Kleber Lucas. A resposta do público, composto em larga medida por admiradores laicos, progressistas e críticos do fundamentalismo religioso, é fria, por vezes, entremeada por vaias.

Muitos entendem essa escolha uma provocação deslocada, uma suposta concessão ao bolsonarismo, dado o histórico apoio evangélico à extrema direita. No entanto, essa leitura é, para dizer o mínimo, apressada e míope. Caetano não cede ao senso comum, mas propõe, pela via da música, uma reflexão profunda sobre escuta, alteridade e a complexidade da experiência religiosa no Brasil.

Reduzir os evangélicos à caricatura do reacionário militante é ignorar a pluralidade real e histórica desse campo e, no atual estado de coisas, incentivar a radicalização de muitos grupos.

Kleber Lucas, pastor batista, negro, progressista e oriundo de comunidade periférica no Rio de Janeiro (RJ), é um exemplo eloquente da riqueza que existe dentro do universo evangélico. Sua trajetória, marcada por pontes entre tradições religiosas, pelo respeito às culturas de matriz africana e pelo compromisso com a justiça social, destoa da retórica de ódio que contaminou setores das igrejas.

Quando Caetano escolhe cantar Kleber, ele o faz com plena consciência: não por ignorância sobre a força do bolsonarismo entre evangélicos, mas justamente para resgatar, em meio ao ruído, vozes que dissonam e que são invisibilizadas. Há, portanto, um erro estratégico e moral no impulso de vaiar Caetano. Rejeitar a canção e a sua proposta é rejeitar o convite a enxergar o outro em sua inteireza, com suas contradições e insurgências internas.

Ao zombar da religiosidade popular, sobretudo quando encarnada em sujeitos negros, pobres e periféricos, setores do campo progressista acabam por reproduzir o elitismo que denunciam e contribuem, inadvertidamente, para o isolamento de milhões de brasileiros.

O abandono simbólico das massas evangélicas, tratadas como um bloco homogêneo e retrógrado, é uma das razões pelas quais a extrema direita tem conseguido monopolizar esse campo. A política, afinal, não se faz só com razão: exige também empatia, imaginação e capacidade de escuta.

Cantar Kleber Lucas em um palco para o público majoritariamente progressista é, da parte de Caetano Veloso, um gesto político potente e perigosamente mal compreendido. Se a esquerda deseja cativar um público maior, precisa deixar de lado o conforto da superioridade moral e compreender, com generosidade e estratégia, a religiosidade do povo.

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