Encontrei um amigo do tempo de faculdade – há muitos anos não o via – e ele me disse que se aposentou aos 53 anos como funcionário graduado de uma repartição pública. Sua aposentadoria é igual a seu último salário na ativa, em torno de R$ 30 mil. Perguntei em que ele estava trabalhando atualmente. “Trabalhando? Não faço nada e nunca mais vou trabalhar!”, foi a resposta.
Falei-lhe para fazer o seguinte raciocínio: “Você trabalhou 33 anos, aposentou-se aos 53 e, se viver 86 anos, viverá 33 anos recebendo do povo brasileiro – a maioria pobre – R$ 30 mil por mês, sem trabalhar... e, se você morrer antes da esposa, ela continuará recebendo em forma de pensão. Todo dia, olhe para seu café da manhã, seu almoço e seu jantar, pense que ali há uns 50 itens de produtos diretos, sem falar nos indiretos [água, gás, luz, telefone etc.], os quais você consumirá por 33 anos sem dar uma única contribuição mais à sociedade para que esses produtos ou quaisquer outros bens e serviços sejam produzidos. Você não se sente mal com isso?” Ele respondeu: “Não! Não me sinto mal”.
Sugeri a ele para pensar no trabalho como um dever moral, independentemente de dinheiro. Falei que, no mínimo, ele poderia fazer um trabalho social, sem remuneração, em tempo parcial, ser útil à sociedade, e isso não o atrapalharia no projeto de continuar gozando os benefícios da boa aposentadoria paga pelo Tesouro Nacional – ou seja, por todos nós. Lembrei-lhe que, no setor privado, o valor máximo de aposentadoria de um profissional que ganhe R$ 30 mil por mês é o teto do INSS, hoje em R$ 5.839,45, mesmo após o empregado contribuir com 11% sobre esse teto e o patrão pagar ao INSS 20% sobre o salário bruto de R$ 30 mil.
Trabalho é toda ocupação útil, remunerada ou não. Uma mãe que cuida de um filho tem uma ocupação útil; logo, trabalha. Seguir trabalhando é um dever moral de todo cidadão saudável, como forma de contribuir para a criação da riqueza (no sentido de bens e serviços) da qual ele destrói (consome) um pedacinho. Esse dever moral tem ligação com outro sentimento que nos faz humanos: o amor ao próximo, do qual decorre o desejo de contribuir para o bem-estar de todos.
Em uma sociedade onde há tantos miseráveis, desvalidos e famintos sem perspectiva e sem futuro, o trabalho, remunerado ou não, é uma forma de amor ao próximo. O ato de consumir é um ato de destruir. O homem que não trabalha destrói o que os outros produzem. Quem não tem nenhuma ocupação útil não contribui para a construção dos bens e serviços que a sociedade produz, nem para o bem-estar social. Nessa linha, o trabalho, para quem tem saúde, é um dever moral e um ato de amor ao próximo.
Após meus argumentos, o amigo disse: “Não preciso de dinheiro”, ao que respondi: “Se o dinheiro não tem a menor importância para você, pois sua aposentadoria lhe garante bom padrão de vida, trabalhe para doar, ajudar a quem precisa, por caridade, mas não passe 33 anos em ociosidade”. Aliás, o estudo e o trabalho fazem bem ao bolso, ao corpo, à mente e à necessidade humana de amar e ser amado.
Alguém poderia perguntar por que razão devemos ter amor ao próximo ou o dever moral de ajudar a produzir o que nós mesmos vamos consumir. Minha resposta: porque somos humanos, e nos elevamos acima dos animais quando praticamos virtudes morais. Jesus Cristo teve e tem tanta influência sobre a humanidade porque toda sua obra foi baseada em apenas duas palavras: amor e perdão. Tudo o que ele fez e pregou deriva dessas duas palavras.
A definição de caridade, segundo Jesus, é: benevolência para com todos (vontade de fazer o bem), indulgência para com as imperfeições alheias e perdão das ofensas. Devemos praticar a caridade, no mínimo, porque precisamos da caridade dos outros, queremos ser aceitos mesmo com nossas imperfeições e desejamos o perdão diante de nossos erros e ofensas. Se queremos tudo isso, devemos dar reciprocidade.
Para alguns filósofos, entre eles André Comte-Sponville, a ética exige do ser humano amor à verdade, amor à liberdade e amor à humanidade como base de toda sua conduta. O respeito a essas três vertentes do amor cobre todos os atos da vida. Não se trata de crer ou não em Deus. Trata-se de ser virtuoso aqui na Terra, nesta vida, não importando o que houver depois.