O polêmico Projeto de Lei 219/2016, ao contrariar os pressupostos da Constituição Federal e do Estatuto da Criança e do Adolescente, desencadeou uma crítica radical de vários juízes, promotores, defensores, advogados e deputados.
A “Lei do Castigo”, como ficou conhecida, é chamada de “monstrengo jurídico”, por vários juristas, por conter erros constitucionais e conceituais grosseiros e irreparáveis.
No PL, está prevista a “aplicação de penalidades” contra alunos. Penalidade no dicionário é sinônimo de “pena, punição, lição, castigo”, que pela Constituição Federal somente pode ser aplicada por um juiz, mediante o devido processo legal.
No texto do PL, a penalidade é aplicada pelos gestores escolares sem direito ao contraditório e à defesa, afrontando a legislação brasileira e as normativas internacionais.
As “atividades com fins educativos”, sem critérios, transformam-se em trabalho forçado, como os exemplos apresentados em documentos contrários ao PL pela Defensoria Pública de MS, pelo Conselho Estadual de Defesa dos Direitos da Pessoa Humana e mais recentemente por mais de 30 instituições e entidades.
Está escrito no artigo 1° do PL: “Ficam os estabelecimentos da rede estadual de ensino obrigados a executar a aplicação (...)”.
Nesse caso, mesmo os gestores escolares que não concordam ou não aceitam essas penalidades serão obrigados a cumpri-las.
Ao focar apenas a rede estadual, sem as escolas particulares, comete-se uma imensa injustiça, penalizando apenas os que não têm recursos para pagar um advogado, pois, como a lei é inconstitucional, um pai de aluno pode obrigar o gestor da escola a reparar e ressarcir o dano causado ao seu filho.
Outros sérios equívocos do PL são a obrigação do gestor escolar de providenciar a revista dos alunos e a suspensão dos benefícios sociais da família.
Montessori, Froebel, Vigotski, Luria, Wallon, Bourdieu, Piaget e muitos outros demonstram em suas obras clássicas serem contrários ao castigo como prática educativa.
Essas formas de “pena” prejudicam a aprendizagem do aluno, criando um sentimento de raiva e de alienação em relação aos professores, à escola e à sociedade. Quando um aluno é obrigado a lavar banheiro, pátio ou vasilha como forma de penalidade, isso caracteriza uma situação vexatória de exposição a um sentimento de chacota que gera sofrimento e raiva.
Mesmo Skinner, que compreende os reforços positivos e negativos no desenvolvimento comportamental, é contra qualquer forma de castigo porque “causa efeitos colaterais perturbadores”.
O grande psiquiatra, pediatra, educador e pensador inglês Winnicott defende a relevância de “saber dizer não”, “o sentido do certo e do errado na criança” e a “colocação de limites rigorosos nas suas relações sociais”, mas vê no castigo uma ação antipedagógica que não educa e ainda impede o desenvolvimento.
O suplício apresentado por Foucault em “Vigiar e Punir” era aclamado por milhares de pessoas em praça pública. Esse PL tem o mesmo sentido de vingança, de castigo, de prazer pela dor do outro, mas na realidade contemporânea.
Muitos professores vivendo em situação de medo, acuados pela violência, veem nesse PL uma solução dos problemas de disciplina e desrespeito nas escolas, mas, na realidade, a proposta vai desenvolver ainda mais a raiva e a agressividade justamente dos alunos que mais precisam ter esses sentimentos abrandados.
As redes escolares e as legislações já dão instrumentos que possibilitam a utilização de sanções por reciprocidade, com caráter pedagógico e não punitivo. Só quem não conhece o verdadeiro teor do PL ou os fundamentos da psicopedagogia pode defender sua aplicação, porque é fundado no senso comum e no caráter punitivo antipedagógico.
Trabalho, estudo e pesquiso a educação de infratores e usuários de drogas há mais de 30 anos e uma evidência sempre reencontrada é que a violência e a delinquência decorrem de vivências anteriores que causaram sofrimento. O respeito, a autoridade e os limites vão sendo construídos nas relações pedagógicas.
Tenho observado durante meus acompanhamentos de estágio, nas mais variadas escolas de Campo Grande, o grande número de professores e escolas que conseguem manter a autoridade e a disciplina necessárias ao fazer pedagógico.
Não precisamos de leis de fora do processo educativo, mas de formação continuada de professores, de condições de trabalho nas escolas, de valorização dos professores e de apoios externos como a cultura de paz e a justiça restaurativa.
*Paulo Cesar Duarte Paes. Pós-doutor e professor da UFMS/Faalc.