Peço licença para os cronistas, já que este texto não tem a formatação de uma crônica, para publicar o que se segue:
Recebi hoje um relicário: “Poesias”, de Abílio Leite de Barros, devidamente autografado. Conhecido e apreciado pelos seus livros de contos e crônicas, esse seu “Poesias”, recém-publicado e ainda não divulgado, me deixou sem fôlego. São 51 páginas, com 17 poemas escritos em sua época de adolescência, nos idos 1950. Uma reflexão do autor sobre a poesia do ponto de vista da razão, ao final desta preciosidade, não encerra a belezura contida dentro dela. Pelo contrário. Inicia, daí para frente, um processo de metamorfose naqueles leitores com almas de loucas borboletas. Seu “Gente Pantaneira”, “Opinião”, “História de Muito Antes”, “Pantanal Pioneiros”, “Crônicas de Uma Nota Só” e “Recoluta” revelam que o corumbaense Abílio aprendeu, em sua primeira infância, a ver o mundo através da janela de um rancho de chão batido. Este é um detalhe importante porque acredito muito naqueles versos do Gilberto Gil: “é debaixo do barro do chão que suspira uma sustança sustentada por um sopro divino”. Aliás, acredito tanto na mítica desse verso gilbertiano que já até o citei em um outro texto meu. Em Abílio, essa sustança foi sendo enriquecida, ao longo de sua vida, com leituras dos clássicos da Literatura Brasileira; dos modernistas Graciliano Ramos, José Lins do Rego, Jorge Amado, Clarice Lispector; dos poetas Drummond, Bandeira, Murilo Mendes, João Cabral, Vinicius e Manoel de Barros, o irmão; dos psicanalistas Ana Freud, Melanie Klein, Young, Sigmund Freud... Também sua formação em Filosofia e Direito, sua passagem pela área do magistério, como professor e secretário de Educação de Campo Grande (1969/1970), seu gosto em conhecer outras gentes, outras culturas acabaram contribuindo para o delineamento de um olhar criteriosamente investigativo sobre o homem enredado nos mais diversos cenários: a natureza silenciosa e introspectiva do Pantanal; os recantos malandramente sedutores do Rio de Janeiro; a sociedade cosmopolita de Campo Grande, multifacetada por traços de matriz rural, de culturas diversas, de feudos ideológicos pendulares que tocam, de um lado, as pontas extremas de uma burguesia deslumbrada com o capitalismo, e, de outro, as das “elites politizadas seguidoras dos ideais marxistas em busca de uma sociedade igualitária e justa”.
Agora, me chega em mãos este delicado relicário “Poesias”, do – não mais exímio escritor, não mais lúcido cronista, tampouco do politizado articulista – Abílio Leite de Barros, que “vivia de cócoras pelo chão, só ouvindo”, nas palavras de seu mano mais velho; ou “um ruminante, mais observador que partícipe”, nas suas próprias – mas do Poeta Abílio, escritas pelo adolescente que foi, há mais de 60 anos, e nunca mostradas – sabe-se lá por que... Teria a Poesia suas emoções que a própria Emoção desconhece?
Explica ele que os “Poemas” são sua “busca mais distante e efetivamente mais forte desta vida que hoje se faz voltada ao passado”. E, como em suas reflexões sobre a poesia, Abílio afirma que “do ponto de vista da razão, a poesia é um distúrbio de caráter lírico-afetivo, vizinho da loucura”, e mais: “O poeta é um malabarista de palavras, joga com elas como uma criança com seus brinquedos, e nesse jogo o sentido do termo perde toda a importância em favor da fantasia”, tenho para mim que Abílio Leite de Barros, “de inesperados disfarces”, não apenas corumbaense (“modéstia à parte”, como ele diz), mas também campo-grandense por exigência de seus inúmeros amigos e admiradores, rompeu seus mistérios revelando-se um ser lírico atemporal, sem limites, sem fronteiras, mágico e livre, entre a manhã e o mundo, remexendo, poeticamente, seu balaio de saudades.
*Professora, poeta, diretora cultural da UBE/MS.