Campo Grande pode atingir a chamada “imunidade de rebanho” da Covid-19 dentro de dois meses e somente a partir disso vai ser seguro reduzir, gradativamente, as medidas restritivas adotadas para conter o avanço rápido da doença. O relaxamento precoce pode levar ao colapso no sistema de saúde, apontam cientistas.
Essa constatação foi feita com base em um estudo desenvolvido por pesquisadores do Brasil, Portugal e Reino Unido.
Academicamente, entende-se por imunidade de rebanho o momento em que uma determinada parcela de uma cidade, estado ou país atinge porcentual de imunização necessário para que a taxa de contágio diminua. Com os infectados contaminando menos gente, os índices de casos novos tendem a reduzir gradativamente até uma situação de controle.
Normalmente, esse cenário é obtido rapidamente por meio das vacinas, mas como a Covid-19 ainda não tem imunização, é preciso aguardar o avanço normal da doença.
Inicialmente, a comunidade científica apontava que a imunidade de rebanho do novo coronavírus poderia ser atingida com algo entre 50% e 70% de infecção entre os habitantes de uma determinada região. Porém, a pesquisa feita com base nas curvas epidemiológicas com base em dados da Bélgica, Inglaterra, Espanha e Portugal revelou um cenário diferente.
CURVAS
A coordenadora do estudo é a biomatemática portuguesa Gabriela Gomes, que atualmente integra o corpo docente da University of Strathclyde, na Escócia. Ela e os colegas observaram que indivíduos dentro de uma mesma população têm diferentes graus de suscetibilidade e de exposição ao vírus.
Existem tanto questões biológicas como sociais envolvidas. Por exemplo, há quem esteja restrito dentro de casa e more sozinho, há quem mantenha o isolamento em um ambiente lotado, há quem não esteja cumprindo medida alguma, etc. Assim, a quantidade de pessoas que cada infectado é capaz de contaminar varia.
Um webinar organizado pela Fundação de Amparo à Pesquisa de São Paulo (Fapesp) na última terça-feira (4) trouxe uma análise preliminar de um caso brasileiro, o Amazonas. O evento fez com que a teoria de que a imunidade de rebanho pode ser alcançada com 20% de contaminação ganhou força.
Participou do evento o infectologista da Fundação Oswaldo Cruz (Fiocruz) e professor da Universidade Federal de Mato Grosso do Sul (UFMS) Julio Croda.
EXEMPLO
O Amazonas é o modelo padrão de como a Covid-19 evoluiria caso os governantes, tanto do país como das cidades do exterior que sofreram com a doença, optassem em deixar a pandemia seguir seu curso natural e não adotar qualquer medida para mitigar o contágio.
Por lá, um mês após a notificação do primeiro caso, já não havia mais vagas em leitos de Unidade de Terapia Intensiva (UTI). Em maio, Manaus já estava abrindo covas coletivas para sepultar as vítimas da doença. O número de casos novos por dia bateu recorde e de repente começou a cair.
A tendência de redução se manteve constante, mesmo com comércio e escolas funcionando desde junho, enquanto estudos mostravam que nem 30% da população local já havia sido exposta ao vírus.
PESQUISADORES ALERTAM
Durante o webinar, Gabriela Gomes ressaltou que a imunidade de rebanho não significa o fim da pandemia. Não adianta se expor voluntariamente ao novo coronavírus achando que se o porcentual for atingido logo, a pandemia acaba. Isso pode causar justamente o efeito inverso: um novo pico ainda pior de casos graves.
Croda acrescentou que a imunidade de rebanho não deve ser adotada como política pública, pois nenhum sistema de saúde é capaz de ofertar a quantidade de leitos de terapia intensiva necessária para enfrentar a primeira onda da doença sem medidas de controle, como isolamento social.
LOCAL
Até ontem, Campo Grande tinha 11.795 casos confirmados por exames. Porém, a subnotificação é uma realidade. A Epicovid, o maior estudo brasileiro de prevalência feito até o momento, sugeriu que o número real seria cerca de seis vezes maior. Assim, podemos estimar que 7,7 mil já pegaram a doença.
Esse montante corresponde a 7,8% da população do município, calculada em 895.982 pelo Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE).
A média diária de casos confirmados por exames em Campo Grande no último mês é de 275, mas considerando a subnotificação é como se 1.650 pessoas pegassem a doença todos os dias, em média. Se a situação se mantiver nesse patamar, o início da imunização de rebanho seria no começo de outubro.
Croda disse ao Correio do Estado que pode ser até um pouco menos, mas a preocupação atual é mais voltada aos leitos de UTI do que com essa questão. Isso porque de nada adianta a imunização coletiva ser alcançada em cima de uma porção de vidas.
No conflito entre economia e saúde, onde o equilíbrio é fundamental, as pessoas poderiam, no mínimo, ficar em casa no fim de semana, o que já ajudaria a manter a situação em um nível aceitável, disse o epidemiologista ao Correio do Estado.
Por hora, aguarda-se resposta da prefeitura sobre o pedido de lockdown feito pela Defensoria Pública judicialmente, já que a ocupação hospitalar atingiu um nível de alerta.