Negligência do poder público também afeta policiais, que não encontram auxílio nem dentro da própria instituição
O áudio gravado pela jornalista Vanessa Ricarte antes de ser brutalmente assassinada pelo ex-noivo Caio Nascimento gerou grande comoção nas redes sociais. Na mensagem de voz, ela expôs o atendimento negligente que recebeu na Delegacia Especializada de Atendimento à Mulher (Deam).
Em meio à indignação da população, dezenas de vítimas escancararam um sistema falho que, segundo elas, protege agressores e condena mulheres ao ciclo da violência.
O Correio do Estado entrou em contato com algumas das diversas mulheres que encontraram, na história de Vanessa, coragem para expor o abandono que sofreram ao buscar ajuda.
"Cada um com seus problemas"
Com direito a uma arma apontada para a própria cabeça, a policial Bruna* sofreu violência física e psicológica do ex-marido, também policial. O homem, que chegou a ter a arma apreendida por alguns meses após a agressão, hoje leva uma vida normal na polícia. Bruna, ao contrário dele, sofre com um sistema que nega acolhimento às vítimas.
Bruna não recebeu nenhum tipo de acolhimento pelo Fundo de Apoio ao Policiano (FAF), entidade criada em 1985, no Mato Grosso do Sul, cujo intuito é justamente fornecer assistência à saúde, assistência psicológica, educacional e social aos policiais militares e familiares.
"O FAF me ligou com um tratamento ríspido. 'Você está precisando de alguma coisa?' Aí eu falei: 'Não, obrigada'. E desligaram o telefone. Ninguém veio aqui na minha casa saber como eu estou. Se eu estava precisando de tratamento psicológico, se eu estava precisando de algum encaminhamento. Ninguém", expõe a policial.
Ela trabalha no Promuse (Programa Mulher Segura), progra,ma da Polícia Militar que atua no combate à violência doméstica em Mato Grosso do Sul. Mesmo sendo atuante no programa que tem como papel proteger mulheres, a servidora teve amparo negado por sua chefe quando precisou.
"Eu nunca tive acolhimento, eu nunca ouvi falar: 'Você está bem?' 'Você está precisando de ajuda?'. Eu trabalho sobre pressão. Eles não querem saber se eu tenho medida protetiva lá dentro desse programa, dentro da PM", relata.
Dentro do programa, a policial trabalhava em conjunto com o judiciário, tendo uma escala de trabalho extra semanalmente. Por conta dessa escala, ela recebia um dinheiro a mais, que ajudava a cobrir os gastos com os filhos, que ainda não tiveram a pensão fixada pela justiça.
No entanto, a mesma chefe que negou acolhimento a retirou das escalas. "Eu falei: 'Tenente, não me tira dessa escala porque eu tenho a medida protetiva e eu estou sem receber um centavo do pai dos meus filhos há três meses. Então eu preciso dessa escala para me ajudar financeiramente", detalha Bruna.
"A tenente tirou a escala, assim, sabe? E falou: 'Cada um com seus problemas. Eu não posso socorrer todo mundo'".
Uma amiga e colega de trabalho de Bruna presenciou os julgamentos que ela sofreu dentro da instituição por ser vítima de violência. "Quando ela pediu a medida protetiva de urgência pela primeira vez, as pessoas de dentro da instituição se reportaram a mim, para dizer que ela tinha voltado com o agressor, duvidando que ela era violentada e a culpando pelo ciclo de violência. Jogavam a culpa até no fato de ela ser uma mulher muito bonita", relata, indignada.
"E o que fez para merecer isso?"
Ao ir até a Deam após um espancamento cometido pelo ex-companheiro, Joana* foi questionada sobre as motivações do agressor. "As mulheres e os policiais de lá perguntavam o que eu tinha feito pro agressor chegar àquele ponto. Eu estava sendo culpada", relata a vítima.
O caso ocorreu em 2016, mas o agressor nunca sofreu nenhuma penalidade. "Eu fiz todo o procedimento de corpo de delito, porém quando teve audiência eles deram causa ganha para ele. Disseram que a minha testemunha mentiu e não foi nada disso que aconteceu. Ele jurou por várias vezes que iria me matar", relembra Joana.
"Não vai dar em nada"
Fernanda* sofreu importunação sexual e foi orientada pela delegada que a atendeu a não dar continuidade à denúncia pois "não daria nada para o vagabundo".
Após insistir em dar andamento ao caso, teve audiência marcada com a juíza um ano depois e, novamente, teve seu problema invalidado. "Ao entrar na sala, a juíza disse que como ela iria prender uma moto se, no caso, eu sabia das características apenas da moto, pois o moço estava de capacete", conta Fernanda.
"Como uma delegada pode me pedir para retirar um B.O. desses? Sei que o sistema é assim e ela não estava errada no sentido de que não daria nada pra ele. Mas eu precisava de apoio e muitas mulheres desistiriam naquele momento".
"Essa é a natureza do homem"
Márcia* foi agredida fisicamente pelo ex-marido durante a madrugada, enquanto dormia porque o agressor estava desconfiando de uma traição. Devido à motivação do agressor, a vítima teve que ouvir sermão dos policiais que foram até a residência. "'Ele é homem. Agiu com natureza de homem.' E eu, vítima, fui culpada", conta a mulher.
O até então casal foi encaminhado com uma viatura à Depac Centro, onde o boletim de ocorrência foi registrado, de forma errônea, como "vias de fato".
Ao amanhecer, a vítima percebeu o erro cometido e se encaminhou à Delegacia Especializada. "Quem me atendeu foi um homem que me disse: 'Não faz nem 24 horas e a senhora já quer mudar sua versão dos fatos?' Eu disse que sim, porque o que estava escrito naquele boletim não foi o que eu contei, não foi o que de fato aconteceu", relata.
Enquanto estava na delegacia, Márcia presenciou uma delegada entrar na sala e dizer, de forma preconceituosa: "Quanta gente! Parece que um ônibus passou na periferia resgatando todas as mulheres que apanharam do marido". Márcia não morava na periferia.
No mesmo dia, à tarde, ela foi ao Instituto Médico Legal (IML) fazer o exame de corpo de delito e, mais uma vez, foi constrangida. "Mesmo eu relatando que as agressões tinham sido apenas no rosto, o médico me fez tirar a blusa, e pediu pra eu 'dar uma voltinha' e no final disse: "Não tem nada de errado com você. Você é linda".
Por fim, a vítima foi encaminhada para o atendimento psicológico, mas os constrangimentos não cessaram. "Fiz só duas sessões, porque na segunda ela me disse que tinham mulheres em situações mais difíceis que a minha", afirma Márcia.
"Repensaria mil vezes se tivesse que precisar novamente acionar a polícia".
"É exagero. Ele não vai fazer nada"
Carla* foi vítima de violência física, psicológica e sexual, além de cárcere privado e stalking. Todos os crimes cometidos por seu ex-companheiro.
Ela fez boletim de ocorrência e contou com a ajuda de familiares para se proteger. No entanto, sofre até hoje com os traumas deixados pelo agressor.
"Eu tenho ataques de pânico com qualquer coisa que acontece de inesperado. Tinha muito medo dele aparecer a qualquer momento. Isso afetou muito o meu psicológico. Tive que tirar meu filho da escola, ficar escondida na casa da minha tia, eu tinha medo de sair na rua", declara.
O medo antigo não é infundado. Mesmo nove anos após as agressões, Carla recebeu uma solicitação de amizade do agressor no Facebook. Por ter medida protetiva que a ampara diante de qualquer tentativa de contato do ex-companheiro, procurou a Deam, desesperada. "Depois de tudo que eu passei, de tudo o que eu sofri, eles tiveram a audácia de falar para mim assim: 'Ele não vai fazer mais nada. Já se passaram tantos anos'. Eles falaram que eu estava exagerando".
*Os nomes foram alterados para preservar a identidade das vítimas
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