Uma doença desconhecida, que causa reações nos infectados ainda em estudo, sem uma medicação comprovadamente eficaz para o tratamento dos pacientes.
Esses são alguns dos desafios que profissionais de saúde do mundo todo enfrentaram durante a pandemia da Covid-19. Em Campo Grande, essa situação não foi diferente.
Desde a sua descoberta, em Wuhan, na China, no ano passado, o novo coronavírus trouxe muito trabalho para médicos, enfermeiros, técnicos de enfermagem e fisioterapeutas, que estão diretamente ligados ao tratamento dos pacientes com a doença.
O vírus trouxe mudanças de protocolos dentro dos hospitais, com obrigação de uso de equipamentos de proteção individual (EPIs), que muitas vezes são incômodos e outras chegam a machucar.
Mudanças fora do ambiente de trabalho também, como o distanciamento dos familiares, mesmo morando na mesma casa.
Na Capital, profissionais de saúde tiveram de se desdobrar para cuidar de milhares de campo-grandenses que contraíram a doença desde março deste ano, quando o primeiro caso foi diagnosticado, e o fazem até hoje.
Já são seis meses de trabalho duro, de isolamento, de aprendizado e de tristeza também.
A dor de perder colegas e de ver diariamente pacientes serem vencidos pelo vírus na batalha pela vida, tudo isso muito de perto.
Todos esses percalços têm sido rotina na vida desses trabalhadores neste período.
Já são mais de 3 mil profissionais da saúde infectados em Mato Grosso do Sul, dos quais quase 2 mil estão em Campo Grande.
Mais de 700 pessoas já perderam a vida no Estado por conta da doença, 300 delas eram da Capital e 1,6% desse número representava pessoas que atuavam na linha de frente da pandemia.
Para não levar o vírus do hospital para aqueles que eles amam, alguns optaram por não voltar para casa. Outros decidiram deixar os filhos com familiares durante a pandemia, e tem também quem montou um “ponto de desinfecção” para entrar em casa sem medo de transmitir a doença.
Ensinamentos
Cansaço físico e mental são alguns dos problemas enfrentados por esses profissionais durante a pandemia.
Para continuar saudável mentalmente, alguns recorrem à fé; outros buscam “o diálogo e trabalho em equipe”, enquanto há quem tente “exercer a inteligência emocional”.
Daqui para frente, segundo eles, o que fica é o ensinamento de que “toda vida tem seu valor”, de que a vida tem que ser vivida “sem rancores e sem dores do passado” e do “verdadeiro sentido da palavra resiliência”.
Alguns dos “heróis mascarados” dessa pandemia na Capital conversaram com a reportagem do Correio do Estado e hoje mostram o rosto ao falar sobre os desafios e ensinamentos que levarão depois que esse período passar.
O médico cirurgião vascular Leonardo Pereira Alves, 41 anos, trabalha no Hospital Regional de Mato Grosso do Sul, na Prefeitura de Campo Grande e também em um consultório. Fábio de Souza Doneida, 42 anos, é enfermeiro e trabalha como coordenador de Enfermagem do Hospital da Cassems, mas está há 22 anos atuando na saúde.
Já Luís Carlos de Aquino Lemos, 30 anos, é fisioterapeuta, está há 6 anos no mercado e atua no Hospital da Unimed. Em comum, eles têm histórias para contar sobre esse período.
“Já perdi colegas de trabalho; ninguém quer ser o próximo”
Sobre a chegada da doença:
“A propagação rápida tanto da doença quanto do noticiário pessimista mudou o mundo. Uma doença que em pouco tempo está presente em quase todos os lugares do mundo. O choque suscitado pela letalidade e fácil contágio transformou o cotidiano das pessoas.
Mas enquanto a ordem era isolamento, nós, profissionais da saúde, estávamos cada dia mais na linha de frente. O contato cada vez mais intenso me fez viver um dia de cada vez”.
Mudança de hábitos:
“Passei a adotar medidas de segurança tanto no trabalho quanto em casa. No trabalho, estou sempre em estado de alerta; atenção redobrada com cada paciente atendido. O uso constante da máscara me trouxe lesões na pele. O uso constante de EPIs traz um desconforto.
Em casa, tenho medo de ser um transmissor assintomático. Ao mesmo tempo que mantinha isolamento dos familiares, aderi cada vez mais a um estilo de vida saudável, com alimentação, atividade física e espiritual. No hospital, sabemos quais são os casos positivos e utilizamos protocolos de segurança e EPIs.
No mercado você vê que o caixa mal sabe utilizar o protetor fácil (eu vi alguns cobrindo a cabeça ao invés do rosto), usando máscara deixando nariz de fora. Em bares, restaurantes e mercados é comum vermos pessoas utilizando EPIs de forma incorreta. Então, ir ao mercado me deixa mais apreensivo do que ir ao hospital.
No hospital já tínhamos protocolos de segurança e EPIs, mas intensificou-se o uso com a pandemia. Já perdemos colegas de trabalho também. Ninguém quer ser o próximo”.
Busca por equilíbrio:
“A espiritualidade [me ajudou], sou católico e passamos por uma situação jamais vista em toda história, com igrejas fechadas e seu maior representante, o papa, rezando sozinho na praça São Pedro. Nossos padres hoje levantam seus smartphones e transformam as telas em vitrais, passando mensagens de fé e espiritualidade.
A maioria é para enfermos e profissionais da saúde. Isso me fortalece”.
Lições para a vida:
“Toda vida tem seu valor. Temos uma visão mais ampla. Ao mesmo tempo que estamos lidando com pessoas enfermas, estamos inseridos na sociedade. Participamos dos cenários dentro e fora do hospital. Como médico, já enfrentamos desafios maiores, porém esse é o primeiro que se torna público.
Pacientes mais graves são desafios maiores, exigem mais dedicação e interação da equipe. Quando evoluem para óbito, a equipe fica sentida, pois sabemos que estamos fazendo o nosso melhor”.
“Evitamos até ir ao banheiro pelo risco de contaminação”
Trabalho:
“Iniciei novo na enfermagem. Com 18 anos, trabalhava como atendente pelo Exército. Este é o [período] mais complicado. A quarentena dos profissionais da saúde é diferente. Eles também se isolam, porém, não podem ficar em casa o tempo todo; estão passando mais tempo dentro dos hospitais do que com suas famílias.
Eles têm mudado suas rotinas para enfrentar uma doença que traz medo e insegurança. Neste momento, a ansiedade tomou conta de muitos, mas com o diálogo, trabalho em equipe, todos se fortaleceram”.
Quarentena:
“Temos que oferecer não só o tratamento, mas a fé de que tudo vai passar. Além de conviver com a tensão pelo risco de ser contaminado, todos têm a preocupação de não transmitir para a família. Sendo assim, muitos se isolaram dentro de casa; outros levaram seus filhos para serem cuidado por parentes.
Temos todo cuidado e atenção ao chegar em casa, desde a retirada do uniforme até a aproximação. Cuidamos do amor de alguém e em casa do nosso amor”.
Medidas de segurança:
“Resolvi adotar algumas medidas, pois me preocupo com essa possibilidade de contaminar a minha família. Não entro em casa com a roupa que vim do hospital; tiro no carro e subo com outra roupa. Meu celular fica dentro de uma capa de mergulho para evitar disseminação do vírus. Saio do carro passando álcool gel até chegar ao banheiro.
É tanto tempo que a gente passa com máscara, aventais, protetor visual, que, ao fim dos plantões, o rosto arde e a boca fica ressecada. Evitamos até ir ao banheiro pelo risco de contaminação no momento de desparamentar. Estamos fazendo treinamentos de paramentação e desparamentação, pois é neste momento que há chance de contaminação”.
Perda de vidas:
“É muito triste cuidarmos por diversos dias de pacientes e ver a batalha sendo ganha pelo vírus. Muitas vezes não aceitamos e terminamos chorando. A experiência no tratamento de pacientes com a Covid-19 me serviu para afirmar o amor pela profissão.
O que vimos é assustador. A vida inteira vi pacientes gravíssimos, mas o que eu tenho visto com a Covid-19 é de arrepiar”.
Lições para a vida:
“Que ninguém é melhor que ninguém, que podemos ser pessoas melhores o tempo todo, pois ninguém trabalha sozinho, e que não tem o super-homem, tem um time. Para a vida minha, pessoal, levo [a necessidade de] oferecer e receber amor, saber perdoar e viver a vida sem rancores e sem dores do passado”.
“Levo comigo quando saio do plantão a gratidão”
Pandemia:
“Não foi fácil encarar o desconhecido, o medo, as incertezas. Com o tempo vamos aprendendo a lidar com a doença e com o doente, mas ainda sinto falta da minha rotina, do afeto entre a equipe. Entrar na [unidade de terapia intensiva] UTI todos os dias sem saber o que lhe espera e sem saber quais desafios virão é a mesma coisa que você entrar numa caverna escura e ter que tirar as pessoas de lá para devolver aos seus familiares. É uma verdadeira missão”.
Sobre ser o maior desafio:
“Com certeza. Até porque além da doença temos que conciliar as demais atividades fora o trabalho. É de suma importância exercer a inteligência emocional. Não é fácil ter esse equilíbrio, até porque a Covid tirou tudo do lugar.
Uma frase que mexeu comigo foi: ‘nada mais voltará ao normal’. Refleti muito sobre isso e tenho que concordar que não voltará ao normal, até porque mesmo enfrentando desafios, crescemos com eles. A Covid nos obrigou a evoluir”.
Rotina:
“Eu tinha a liberdade de criar minha rotina. Agora é a Covid que toma a frente. Tive que focar na Covid e estudar o que estava acontecendo, descobrir quais minhas parcelas de contribuição. Nessa mudança, eu já não tenha meus pacientes que realizava atendimento domiciliar, pois devido ao meu contato direto com a doença, não queria expor meus pacientes, pois são idosos.
Fui obrigado a me adaptar. É questão de sobrevivência, não dá pra entrar nesse mundo e viver só nele”.
Em casa:
“Minha esposa e eu trabalhamos na área hospitalar. Tudo que mais queríamos era obedecer ao isolamento, mas reconhecemos que nosso trabalho é útil para o momento. Temos que nos paramentar para nos proteger.
Antes era só um privativo, agora são vários EPIs que quase não conseguimos nos identificar. Graças a Deus, não [nos infectamos]. Minha esposa tem uma receita natural, aquelas da vovó, que parece que está dando certo”.
Lições para a vida:
“Além das marcas no rosto devido aos EPIs, tenho levado comigo quando saio do plantão a gratidão. Quero poder aproveitar mais a vida e as oportunidades que ela nós dá. Aproveitar as coisas simples, ajudar mais o próximo, reclamar menos, persistir mais.
Estou a 2.109,6 quilômetros dos meus familiares, então cuido de cada paciente como se fosse um familiar meu. Só quero a oportunidade de poder abraçá-los. Levarei o sentido da palavra resiliência, é a pessoa que me tornei: resiliente”.