Fernanda Brambilla, AE
Mariatu Kamara começava a entender como a vida funcionava na pobre aldeia rural de Serra Leoa e as regras que ditavam o seu mundo: a infância na lavoura, a falta de educação, um casamento arranjado. Aos 12 anos, um trágico acontecimento transformou sua triste realidade em algo ainda pior. Vítima de um ataque de rebeldes, ela teve as mãos mutiladas a golpes de facão. E sobreviveu. O martírio de Mariatu, no entanto, ainda não havia terminado. Logo depois, descobriria que estava grávida, resultado de um estupro, coisa que, até então, ela nem sabia o nome. Hoje, aos 24 anos, Mariatu mora no Canadá, onde estuda e sonha em trabalhar na ONU. O livro no qual ela conta sua trajetória, “A mordida da manga”, acaba de chegar às livrarias do País, pela editora Planeta. Em sua narrativa, Mariatu denuncia as atrocidades de uma longa guerra civil (1991-2002), que acompanhou de perto. Confira a entrevista:
Seu livro fez sucesso no Canadá e nos EUA. Tem ideia da repercussão da sua história?
Não. Nunca tive nenhuma expectativa. Mas me sinto bem em poder compartilhar minha história com outras vítimas ao redor do mundo, gente que não teve a chance de falar o que sofreu. Lendo a minha história, talvez elas encontrem sua própria voz.
Você perdeu um filho de maneira drástica, ainda criança. Hoje, pensa em ter uma família?
Tenho alguém muito especial na minha vida. Espero ter uma família feliz e ter meus filhos, sim.
Você ainda acredita em Deus?
Minha filosofia de vida é seguir a obra de Deus. Tenho muita fé e nunca deixei de acreditar que Deus é meu mentor.
Sua avó lhe diz, no livro, que tudo acontece por um motivo. Você concorda com ela?
Sim. Se você acreditar que tudo é possível, que a sua direção foi guiada por Deus, então Ele irá protegê-lo para superar tempos difíceis.
Você ainda pensa em como tudo seria diferente se o ataque dos rebeldes não tivesse ocorrido?
Sim, eu penso. Em muitos momentos, me esforço para deixá-los no passado. Tento sempre manter o foco no futuro.
Olhando para trás, o que foi mais difícil na sua trajetória?
Ir para a escola. Como não estudei quando criança, não tinha nenhuma base. Comecei a estudar aos 17 anos. Hoje, estou a um semestre de concluir a faculdade de Direito.
Você se sente uma cidadã canadense? Para você, qual o significado da palavra “lar”?
Ainda sinto no meu coração que minha casa é Serra Leoa. O Canadá é o meu segundo lar. Lar é onde estão a sua família, amigos e as pessoas que você ama.
Hoje você prefere não usar próteses nas mãos?
Eu me sinto mais confortável sem elas. Talvez no futuro, quando a tecnologia mudar, vou reconsiderar. Mas hoje consigo fazer tudo sem elas. Tudo é difícil. Tudo leva um tempo enorme para fazer, mesmo as coisas mais simples.
Você foi eleita pela Unicef como Representante Especial das Crianças Envolvidas em Conflitos Armados. O que espera fazer no futuro?
Quero continuar a luta por direitos humanos. Hoje, viajo para contar às pessoas a minha experiência na guerra civil em Serra Leoa. Quero chamar a atenção para as atrocidades da guerra e o sofrimento das pessoas comuns que têm a vida afetada. Vou terminar a faculdade em Toronto, para me tornar uma advogada e defender crianças e mulheres. Quero trabalhar na ONU.
Você se encontrou com o presidente de seu país em 2008.
Fui para lembrá-lo das promessas de seu antecessor, de ajudar as vítimas da guerra civil, proporcionar remédios e educação às vítimas. Nenhuma das promessas foi cumprida. Os anos se passaram e muita gente continua sofrendo. Ainda estou esperando por mudanças.
Pode falar do título do seu livro?
O título é o reconhecimento e um tributo a um homem bondoso, que foi o primeiro a me ajudar (quando Mariatu tinha acabado de ser mutilada pelos rebeldes). Mas também é uma menção ao meu próprio instinto de sobrevivência. Aquele homem se arriscou ao me oferecer uma manga para comer. Mas quando eu aceitei e me esforcei para receber aquela manga de suas mãos, foi o momento em que decidi que lutaria para sobreviver. Decidi que viveria, sim.
Hoje você é uma pessoa feliz?
Às vezes. Eu me esforço para fingir que está tudo bem. Tenho esperança de que haja um futuro, de que algo aconteça no futuro.