A Lei Maria da Penha completou 14 anos desde sanção na sexta-feira (7) e na entrevista da semana desta segunda-feira (10) o Correio do Estado convidou a defensora pública e coordenadora do Núcleo Institucional de Promoção e Defesa dos Direitos da Mulher (Nudem) em Mato Grosso do Sul, Thaís Dominato Silva Teixeira, para comentar os avanços da legislação e o que ainda precisa de avanço no combate à violência contra mulher.
Durante a entrevista a defensora destacou que a lei não veio apenas para punir o agressor, mas também para proteger a vítima. Thaís Teixeira ressaltou ainda que mesmo com os 14 anos muitos não entendem porque uma legislação para proteger mulheres. “Custam a entender que a Lei Maria da Penha veio para corrigir o que está muito desigual, afinal, a raiz dessa violência é a relação de desigualdade e de poder imposta a nós mulheres”.
Dra. na semana passada a Lei Maria da Penha completou 14 anos em vigor. Como a senhora vê as mudanças na sociedade com a legislação que ainda é considerada jovem?
A lei é mesmo muito jovem ainda e, considerada uma das melhores do mundo, trouxe mudanças significativas no sentido de retirar a violência doméstica e familiar contra a mulher da invisibilidade e destacar que essa violência não pode mais ser naturalizada ou tolerada. Aos poucos, a sociedade, embora marcada pelo machismo estrutural, vai se dando conta de que violência contra a mulher é violação de direitos humanos e não mera briga de casal, que em briga de marido e mulher a Justiça mete a colher, que mulher é sujeito de direitos e não um objeto e assim por diante. A lei vem sendo aplicada, mas, nesse percurso acontece um choque porque as mudanças na sociedade não têm a mesma velocidade da legislação. É como se a nossa mente não acompanhasse as mudanças trazidas pela lei e, nesse sentido, ainda hoje, não raras vezes e decorridos 14 anos, há pessoas que questionam o porquê de uma legislação somente para as mulheres. Custam a entender que a Lei Maria da Penha veio para corrigir o que está muito desigual, afinal, a raiz dessa violência é a relação de desigualdade e de poder imposta a nós mulheres. Daí a necessidade de se investir na educação, na mudança cultural voltada para a equidade de gênero, tanto para os adultos que precisam ressignificar muitas coisas, quanto para as crianças e adolescentes. Aliás, a própria Lei Maria da Penha prevê a necessidade de destaque nos currículos escolares para os conteúdos relativos aos direitos humanos, à equidade de gênero e de raça ou etnia e ao problema da violência doméstica e familiar contra a mulher. Não haverá lei suficiente enquanto continuarmos criando os meninos com a perspectiva de que mulheres são suas propriedades e as meninas com a perspectiva da limitação de suas vontades e realizações.
O Brasil precisou ser oficializado quatro vezes pela Comissão Interamericana de Direitos Humanos da Organização dos Estados Americanos (CIDH/OEA) e responsabilizado por negligência, omissão e tolerância em relação à violência doméstica praticada contra as mulheres brasileiras para que mudasse sua legislação com relação à defesa dos direitos das mulheres. A senhora como defensora pública o que acha que precisa melhorar?
O reconhecimento do Brasil internacionalmente como sendo negligente e tolerante em relação à violência doméstica forçou a produção da Lei Maria da Penha, cujo texto, é importantíssimo destacar, surgiu da realidade empírica, do movimento de mulheres, da escuta dessas mulheres e, portanto, nenhum dos artigos originais é por acaso. Sendo assim, precisamos buscar a integral aplicabilidade e efetividade da lei. A intenção da legislação não é meramente a punição do agressor, mas, sobretudo a proteção da mulher, a garantia de uma vida livre de violência. Temos as medidas protetivas de urgência, mas ainda é necessário que se aprimore a fiscalização do cumprimento; temos a certeza de que o processo criminal não se resumirá a “cestas básicas” para o agressor, mas ainda é necessária a instalação dos juizados de violência com competência cível e criminal para que um único juiz, de forma concentrada e conhecedor do contexto da violência daquela mulher, resolva tanto as questões criminais quanto as de direito de família. Mas não é só isso. A lei Maria da Penha também preconiza o dever do Poder Público de criar condições para que essa mulher alcance seus direitos sociais. Se a mulher rompe o ciclo da violência e não encontra respaldo de políticas públicas que efetivamente concretizem seu direito à moradia, saúde, educação, trabalho e assistência social, certamente terá grandes chances de retornar para a violência e mais, isso encoraja o agressor a continuar. Diariamente nos deparamos com essas dificuldades das mulheres que, em situação de violência, não encontram amparo adequado nos programas habitacionais e não conseguem atendimento psicológico para fortalecerem-se e tampouco atendimento psicológico para os filhos (as) que em regra presenciam toda a violência, dentre outras. Desta forma, temos um longo caminho pela frente.
Uma das discussões que tem ganhando a sociedade são os relacionamentos abusivos e as formas de agressão, além da física, que a mulher sofre em uma relação. A senhora considera essa conscientização sobre os tipos de agressão importante para diminuir os casos de violência física? A Maria da Penha engloba esse tipo de violência, tem penalidade para o autor?
Entendo necessário conscientizarmos a sociedade de que violência contra a mulher não é só a física. Trazer em seu bojo expressamente previstas as formas de violência, quais sejam, física, psicológica, sexual, patrimonial e moral, foi uma das novidades da Lei Maria da Penha que reconhece todas como causadoras de sofrimento e dano e, portanto, passíveis de aplicação da legislação especial. A violência psicológica, por exemplo, destrói a auto estima da mulher que não consegue encontrar forças para romper o ciclo da violência e cada vez mais temos atendido no núcleo da defensoria mulheres gravemente adoecidas em razão dessa forma de violência sofrida por longos períodos. Então, com certeza, compreender, por exemplo, que ameaças, humilhações, tentativas de controle da própria vida, invasão de privacidade, destruição de objetos pessoais, apesar de não atingirem a integridade do corpo, são formas de violência e romper esse tipo de relacionamento evitará o passo seguinte que é o da violência física. Destaco que as penalidades para o autor em razão do cometimento da violência encontram-se, em regra, no Código Penal ou na Lei de Contravenções Penais e não na Lei Maria da Penha. Assim, o autor poderá ser processado pelos delitos de lesão corporal ou vias de fato; mas também por ameaça, estupro, importunação ofensiva ao pudor, perturbação de tranquilidade, registro ou divulgação de cenas de sexo ou nudes, dano, injúria, etc.
De acordo com a Agência Senado, a pesquisa Violência Doméstica e Familiar contra a Mulher – 2019, realizada pelo DataSenado, em parceria com o Observatório da Mulher contra Violência, apontou que quase sete em cada dez mulheres brasileiras acreditam que a Lei Maria da Penha não as proteja contra a violência doméstica e familiar (21%), ou que as proteja apenas em parte (47%). Somente 30% se sentem protegidas pelo diploma legal. Dois por cento não sabem ou não quiseram responder. Como a senhora acha que o sistema público de atendimento à mulher vítima de violência pode melhorar para dar a segurança que ela precisa?
Nessa pesquisa apontada também aparece uma informação bastante interessante: embora a Lei Maria da Penha seja muito popular, quase 70% das mulheres entrevistadas disseram que a conhecem muito pouco, ou seja, isso significa que não sabem como utilizá-la a seu favor, quais são as formas de violência, os instrumentos de proteção, os serviços de atendimento, como funciona o processo judicial no contexto da violência doméstica ou como se faz para denunciar adequadamente uma agressão ou o descumprimento de uma medida protetiva. Então, acredito que a divulgação nunca pode ser deixada de lado, pois uma mulher informada, empoderada, é capaz de transformar o conhecimento em ação e exigir seus direitos ou não permitir que sejam lesados. Por outro lado, o Estado, em sentido amplo, e considerando que a violência contra a mulher é uma pandemia, precisa dar prioridade ao enfrentamento. A Justiça precisa ser rápida e atuar com perspectiva de gênero; a Segurança Pública precisa encontrar meios cada vez mais eficazes de proteger a mulher que está inserida no sistema e evitar feminicídios; são necessários serviços qualificados de acolhimento, de saúde, de qualificação profissional, de educação e assistência social. É necessário, portanto, orçamento e é uma lástima a constatação de que a partir de 2015 o governo federal vem destinando cada vez menos recursos para serem gastos com políticas públicas para mulheres.
Campo Grande foi a primeira capital brasileira a receber um local com amplo atendimento para as mulheres vítimas de violência tenham um atendimento mais humanizado, além de local para dormir e acolhimento para seus filhos. Como fazer para que esse atendimento chegue no interior? Pesquisas apontam que apenas 30% das cidades com população de 20 mil a 50 mil habitantes tem serviços voltados para combater a violência doméstica e o número é de menos de 4% nas localidades com menos de 5 mil moradores.
A Casa da Mulher Brasileira de Campo Grande é um projeto que deu muito certo. Ofertando o atendimento humanizado e evitando a rota crítica a ser percorrida pela mulher, permite que no mesmo local se tenha acesso à Delegacia de Polícia especializada, Defensoria Pública, Ministério Público, Judiciário, além do atendimento psicossocial e abrigamento. Mas a rede de proteção à mulher e de enfrentamento à violência pode estabelecer-se e tornar-se forte e confiável nos municípios do interior. Para que isso aconteça, destaca-se mais uma vez, necessário que os (as) gestores (as) tratem do assunto de forma séria e com prioridade. Ideias simples como a comunicação entre a rede de saúde e de assistência social entre si e com o Sistema de Justiça, a criação de fluxo e protocolos para o atendimento são exemplos que fazem toda a diferença. A rede precisa conversar, se conhecer, e assim atender à mulher em situação de violência de forma adequada e integralizada.
A frente do Núcleo Institucional de Promoção e Defesa dos Direitos da Mulher (Nudem) da Defensoria Pública de Mato Grosso do Sul, qual é a sua avaliação com o papel da Justiça no acolhimento a essas mulheres e o que ainda deve melhorar?
O Sistema de Justiça tem se empenhado bastante no atendimento das mulheres em situação de violência doméstica e familiar. Verifica-se no país todo a criação das coordenadorias e núcleos especializados dos Tribunais de Justiça, do Ministério Público e da Defensoria Pública, assim como a ampliação do número de delegacias especializadas. Nosso Estado não tem sido diferente e cada vez mais se busca o atendimento especializado e humanizado dessas mulheres como prioridade dentro das Instituições que buscam estender esse trabalho de atuação com perspectiva de gênero para as comarcas do interior.
Como mulher e defensora desses direitos, qual o conselho a senhora dá para as vítimas de violência?
A orientação é para que a mulher sempre fique atenta aos primeiros sinais da violência e peça ajuda para sair do relacionamento abusivo no qual o ápice pode sim ser o feminicídio que, em regra, não acontece como um ato isolado, mas é o fim esperado de uma sequência de violências que o antecedem. Desconfie do ciúme e da vigilância disfarçados de amor. Desconfie do excesso de cuidados que te afasta dos amigos e da família. Fique atenta a quem te anula, te desqualifica, te dá o primeiro empurrão. Peça ajuda aos mais próximos e denuncie, busque a rede de atendimento que pode ser o sistema de saúde, de assistência social, delegacias, Defensoria Pública ou Ministério Público.
Em caso de violência doméstica, a mulher pode procurar direto a Defensoria Pública? Quais os caminhos que a vítima deve seguir em busca de ajuda? Tem algum telefone que elas possam ligar?
O Núcleo de Defesa da Mulher da Defensoria Pública (NUDEM), que tem abrangência estadual, foi criado no ano de 2014 aqui no Estado com a função primordial do atendimento das mulheres em situação de violência de gênero. Nosso maior atendimento, não há dúvidas, está relacionado à violência doméstica e aqui na capital somos quatro defensoras com a atribuição de acompanhar as mulheres nos processos criminais que tramitam nas varas de violência doméstica, atuando na defesa da vítima nas audiências, nas medidas protetivas e também ajuizando todas as ações tão necessárias para o rompimento definitivo do ciclo da violência doméstica, como por exemplo, ações de divórcio, dissolução de união estável, guarda e alimentos para os (as) filhos (as), partilha de bens, etc. Além disso, o Núcleo tem atuado fortemente na promoção e divulgação dos direitos humanos das mulheres por meio da produção de folders, cartilhas e realização de capacitações e rodas de conversa, inclusive, virtuais neste momento. A mulher em situação de violência pode sim nos procurar, ressaltando que em meio a pandemia estamos atendendo os casos urgentes de plantão pelo telefone das unidades durante os dias úteis (Em Campo Grande 3313-5835) e, principalmente, por meio da plataforma virtual no endereço www.defensoria.ms.def.br, onde as mulheres encontrarão um campo específico denominado “mulheres em situação de violência doméstica” para solicitar o atendimento.