Tramita no Congresso Nacional o Projeto de Lei Complementar 518/09, pelo qual se pretende alterar a LC 64/90, que estabelece, na forma do art. 14, § 9º, da Constituição, casos de inelegibilidade, a fim de proteger a probidade administrativa e a moralidade para o exercício do mandato.
À luz do mencionado art. 14, § 9º, da CF, com a redação dada pela EC 4/94, o projeto pretende alterar a Lei de Inelegibilidades, considerando a vida pregressa dos candidatos, principalmente no caso de pendências com a Justiça por envolvimento em crimes graves e, também, suspender a exigência de trânsito em julgado das decisões condenatórias. Propõe, ainda, estender para oito anos o prazo de inelegibilidade e tornar mais rápidos os respectivos processos judiciais. Por fim, o projeto veta a candidatura daquele que renunciar ao mandato para evitar a abertura de processo de cassação.
Referido projeto teve origem em iniciativa popular, na forma do art. 61, § 2º, da CF, que prevê essa possibilidade, desde que seja subscrito por, no mínimo, um por cento do eleitorado nacional, distribuído pelo menos por cinco Estados, com não menos de três décimos por cento dos eleitores de cada um deles.
O denominado Projeto Ficha Limpa conta com a assinatura de mais de 1,6 milhão de eleitores. Tem apoio, ainda, de diversas entidades, dentre elas a CNBB e a OAB.
A iniciativa do projeto de lei em comento é emblemática, pois revela um sentimento geral de indignação com os sucessivos casos de improbidade e imoralidade praticados por parte de nossos representantes eleitos em sufrágio universal.
No que toca à suspensão da exigência do trânsito em julgado das decisões condenatórias (o que, em tese, poderia afrontar a presunção de inocência), é bom frisar que, em 6.8.2008, o STF, no julgamento da ADPF 144, decidiu, por maioria, que os efeitos do princípio do estado de inocência irradiam para além dos contornos dos processos criminais, repercutindo, portanto, em outras esferas do direito, ou seja, segundo a Suprema Corte, o candidato poderá ser eleito, mesmo se figurar como réu em processo criminal ou de improbidade, ainda que haja condenação, pendente de recurso.
No mencionado julgamento, restaram vencidos os ministros Carlos Aires Britto e Joaquim Barbosa.
Em seu voto, o ministro Joaquim Barbosa sustentou que há muito se compreende que os direitos fundamentais não possuem caráter absoluto. No âmbito do Direito Penal não pode haver dúvida quanto à aplicação irrestrita da presunção de inocência, uma vez que visa proteger individualmente o cidadão acusado da prática de um delito. No que tange aos direitos políticos, a presunção de inocência deve ser vista com outros olhos, pois a elegibilidade não trata de um direito individual, mas de um direito coletivo (representar uma coletividade), interferindo na própria relação que une os cidadãos a seus representantes. Concluiu que a própria democracia se vê diminuída e deslegitimada ao se permitir a candidatura de “fichas sujas”.
Esse é o ponto fundamental. O art. 14, § 9º, da CF, determina que a vida pregressa do candidato deve ser considerada para efeito de elegibilidade, a fim de proteger a probidade administrativa e a moralidade para o exercício do mandato. A inelegibilidade não constitui, por si só, restrição a nenhuma garantia individual, a ensejar aplicação desmedida do princípio do estado de inocência; contrariamente, a vida pregressa irretocável consubstancia-se tão-somente em um pressuposto constitucional para se postular cargo eletivo. Diferentemente das garantias individuais, a elegibilidade, assim como os demais direitos políticos, não é um direito que visa servir direta e individualmente ao candidato, mas objetiva servir à soberania popular e à democracia.
Hélio Bicudo asseverou que esta condição não poderá ser esquecida quando se trata de candidato aos postos eletivos do Executivo e Legislativo, da mesma maneira que se exige reputação ilibada para aqueles que desejam integrar a Magistratura, o MP e toda uma série de outros cargos públicos.
O que se pretende demonstrar é que as normas devem ser interpretadas com equilíbrio, ponderação, proporcionalidade e razoabilidade, de modo que a Constituição não se transforme em um latifúndio improdutivo, conforme sugestiva comparação de Lênio Streck.
Vale registrar o alerta que fizera o juiz Walter Maierovitch, em depoimento ao Congresso Nacional, de que se medidas eficazes não forem tomadas, corre-se o risco de o crime organizado estar, em breve, assentado, deliberando, votando naquela casa de leis. Dizem que o juiz fora irônico com alguns dos ali assentados.
No último fim de semana, a Folha publicou entrevista do Des. Luiz Carlos Santini, presidente do TRE, que revelou sua preocupação com a possibilidade de facções criminosas direcionarem votos de presos provisórios, no sentido de votarem em um ou outro candidato.
Mais preocupante e estarrecedora é a suspeita de que alguns candidatos possam manter vínculo com o crime organizado, a ponto de facções criminosas se mobilizarem em torno de sua campanha.
Enfim, apesar de pouco se ouvir sobre o Projeto Ficha Limpa, o fato é que a proposta, em princípio, será apreciada a partir de 7 de abril, pela Câmara dos Deputados, sendo indispensável vigorosa mobilização popular, pois o deputado Michel Temer, presidente daquela casa, já acenou com a possibilidade de não submeter o projeto ao plenário, por não haver consenso entre os parlamentares, o que, sem dúvida, não seria de se estranhar.
Marco Aurélio de Oliveira Rocha, procurador federal, [email protected]