O Setembro Amarelo, mês de prevenção ao suicídio, costuma iluminar edifícios e campanhas de conscientização em todo o Estado. Mas, para a Polícia Militar de Mato Grosso do Sul (PMMS) e a Polícia Civil, a luz da campanha mal alcança a escuridão de um problema que, por anos, tem sido tratado em silêncio: a alta taxa de suicídios entre seus integrantes.
Um levantamento da própria instituição, obtido via Lei de Acesso à Informação (LAI), revela que, entre 2019 e abril de 2024, nove policiais militares de Mato Grosso do Sul tiraram a própria vida. O número é alarmante, especialmente quando comparado com a taxa nacional. Na Polícia Civil, desde 2014 foram 11 suicídios de policiais, entre eles, um delegado de polícia.
Segundo o Fórum Brasileiro de Segurança Pública, Mato Grosso do Sul teve a maior taxa de suicídio entre policiais militares e civis do Brasil em 2022, com 0,6 por mil policiais na ativa. O número é superior até mesmo ao de estados com efetivos muito maiores, como São Paulo e Rio de Janeiro.
A tragédia dos números é apenas a ponta do iceberg de uma crise maior de saúde mental, frequentemente negligenciada em uma profissão que exige força e resiliência, e que impõe um pesado estigma sobre qualquer sinal de fragilidade emocional. O suicídio tem matado mais policiais do que confrontos.
PREOCUPAÇÃO
A tabela de dados internos da PMMS mostra um padrão preocupante: a grande maioria das vítimas (oito de nove) era do sexo masculino. Esse dado reflete uma estatística mais ampla no Estado, onde homens cometeram 270% mais suicídios do que mulheres na última década.
A dificuldade em buscar ajuda e o estigma em demonstrar vulnerabilidade são barreiras sociais que se exacerbam no ambiente militar, que historicamente valoriza a autossuficiência.
Um dos casos que humanizam a estatística é o do soldado Jhon Everton Silveira, de 32 anos, que cometeu suicídio em Rio Brilhante, em 2021. Em outro caso recente, um sargento da PM foi encontrado morto em sua casa, em Campo Grande, em setembro de 2024. Em julho de 2023 uma delegada foi encontrada morta em sua chácara, nos arredores de Campo Grande.
A pressão sobre os policiais é inegável. O estresse crônico, a exposição à violência e o trauma constante podem levar a quadros como a síndrome de burnout, comum na categoria.
CAMINHOS
Embora o cenário seja desafiador, existem iniciativas de apoio em Mato Grosso do Sul.
O Estado aderiu ao programa “Escuta Susp”, que oferece atendimento psicológico remoto e sigiloso para profissionais da segurança pública.
O serviço é conduzido pela Secretaria Nacional de Segurança Pública, órgão ligado ao governo federal, e a Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG) e atende a queixas como ansiedade e depressão. As consultas são on-line, sigilosas e ocorrem por meio da plataforma do projeto.
Outra medida está vinculada ao Fundo de Assistência Familiar (FAF) e à Policlínica da Polícia Militar. Na Polícia Civil, existe o Departamento de Gestão de Pessoas/Coordenadoria de Atendimento Psicossocial e Espiritual da Polícia Civil (DGP/CAPE).
Chama atenção que o atendimento psicossocial esteja interligado ao departamento “espiritual” da instituição. No entanto, especialistas apontam que a prevenção ainda é majoritariamente reativa, dependendo da iniciativa do policial para buscar ajuda. O desafio agora é mudar a cultura de silêncio e o estigma.
O caminho para ajudar a tropa já foi amplamente estudado pelas universidades e custeado com dinheiro público.
Mas as respostas e sugestões parecem não atingir os comandos das secretarias de segurança pública.
Inteligência artificial revela fatores de proteção para saúde mental de policiais: reconhecimento e estabilidade
Estudo aponta que elogios formais podem reduzir o risco de transtornos em quase 50%, enquanto mudanças constantes de lotação aumentam o perigo. Pesquisa abre caminho para sistema de prevenção.
Um elogio formal pode ser mais eficaz para proteger a saúde mental de um policial do que se imagina, atuando quase como uma "vacina" contra o estresse crônico da profissão. Em contrapartida, a instabilidade na carreira, marcada por sucessivas mudanças de lotação, funciona como um gatilho que aumenta significativamente o risco de desenvolvimento de transtornos como ansiedade e depressão.
Essas são as conclusões centrais de uma dissertação de mestrado inovadora da Universidade Federal de Mato Grosso do Sul (UFMS), defendida em 2024 por Fabiana Souza Pedraza, psicóloga que é policial civil e atua no Departamento de Gestão de Pessoas/Coordenadoria de Atendimento Psicossocial e Espiritual da Polícia Civil. A dissertação faz parte do Laboratório de Psicometria, Avaliação Psicológica e Educacional (LabPAPE), coordenado por Alexandre José de Souza Peres, atual coordenador do Programa de Pós-Graduação em Psicologia da UFMS.
A pesquisa, intitulada "Adoecimento Mental em Policiais: Identificação de preditores para o desenvolvimento de um sistema de intervenção precoce"", utilizou técnicas de inteligência artificial para analisar milhares de registros administrativos de “uma instituição policial do Centro-Oeste", termo geralmente utilizado em pesquisas cientificas para preservar eticamente a base de dados, mas, que indica se tratar da Polícia Civil de MS, e identificar, com precisão matemática, os principais fatores que adoecem ou protegem os agentes de segurança. O objetivo final é criar um Sistema de Intervenção Precoce (SIP) capaz de alertar gestores sobre policiais em risco antes que uma crise se instale.
“O modelo é probabilístico, o que significa que ele calcula a probabilidade de ocorrência de um evento, mas não determina com certeza que ele ocorrerá. Portanto, um policial identificado como “de risco” não está predestinado a adoecer; ele está apenas mais vulnerável, o que permite ações preventivas mais eficazes. O intuito deste sistema é prevenir o adoecimento, não punir”, explica a autora.
Adoecimento em números
O estudo revela a dimensão do problema: entre 2014 e 2022, os Transtornos Mentais e Comportamentais (TMC) foram a causa de 30% de todas as licenças médicas na corporação analisada. Os afastamentos por essa razão são longos, com uma média de 43 dias, um período superado apenas por licenças para tratamento de câncer. Houve um aumento a partir de 2020, ano da pandemia do corona vírus.
"Os dados mostram que não estamos falando de casos isolados. O adoecimento mental é uma questão estrutural e de alto impacto para as forças de segurança", explica a autora na dissertação. Os diagnósticos mais comuns são transtornos neuróticos (ligados ao estresse e ansiedade) e transtornos de humor (como a depressão), que, somados, respondem por mais de 90% dos casos.
Ao treinar os modelos de aprendizagem de máquina com dados de elogios, punições, licenças, avaliações e movimentações, a pesquisa conseguiu mapear os verdadeiros "vilões" e "heróis" da saúde mental no ambiente policial.
Os principais fatores de risco que promovem o aparecimento de TMC são:
- Instabilidade na Carreira: Mudar de cidade ou de setor com frequência mostrou-se um forte fator de risco. O estudo calculou que as movimentações estão associadas a um aumento de 13% na chance de um policial desenvolver um transtorno mental.
- Desempenho no início da carreira: A nota no estágio probatório revelou-se um preditor crucial. Policiais que não receberam elogios e tiveram notas abaixo de 95 (em 100) apresentaram uma probabilidade alarmante de 92% de desenvolver um transtorno mental no futuro.
- Saúde geral fragilizada: Ter um histórico de licenças por outras doenças (não mentais) foi a variável mais importante para os modelos preditivos, sugerindo que uma saúde física debilitada pode abrir portas para o adoecimento psíquico. As atribulações da carreira policial, com falta de tempo e espaço para o bem estar do corpo pode ser o fator de gatilhos.
O principal fator de proteção seria o reconhecimento formal. A pesquisa quantificou o poder de um elogio. Policiais que receberam elogios ou premiações tiveram a chance de desenvolver um transtorno mental reduzida em 49%. Para o modelo de "árvore de decisão", ter ao menos um elogio na carreira diminuiu a probabilidade de adoecimento para apenas 7%.
“A cultura de liderança revela que líderes que reconhecem o trabalho dos policiais promovem um ambiente mais saudável. O efeito marcante do elogio sugere uma possível escassez de reconhecimento formal ou informal, bem como uma tendência organizacional a valorizar mais o erro, o controle e a falha do que o reforço positivo”, avalia Pedraza.
"Isso nos mostra que o estresse organizacional, a sensação de instabilidade e a falta de valorização podem ser mais danosos do que a exposição a um único evento crítico", argumenta Pedraza no texto. "O reconhecimento não é apenas um afago no ego, é uma ferramenta de gestão que gera estabilidade e fortalece a resiliência".
A grande proposta derivada do estudo é a criação de um Sistema de Intervenção Precoce (SIP). Na prática, seria um software alimentado continuamente com dados administrativos que funcionaria como um "radar", identificando padrões de risco e alertando os gestores.
Um policial que, por exemplo, passa por múltiplas mudanças de lotação em pouco tempo, apresenta queda em suas avaliações e tem um histórico de licenças médicas poderia ser "sinalizado" pelo sistema. O objetivo, ressalta a pesquisa, não é punir, mas oferecer suporte.
"A ideia é mudar a cultura do reativo para o proativo. Em vez de esperar o policial chegar ao limite para oferecer ajuda, o sistema permite que o gestor atue preventivamente, com uma conversa, um direcionamento para o apoio psicológico ou uma reavaliação das condições de trabalho daquele servidor", conclui a autora.
A pesquisa de Pedraza, portanto, não apenas diagnostica um problema crônico na segurança pública, mas oferece um caminho prático e baseado em dados para construir um ambiente de trabalho onde cuidar da saúde mental de quem protege a sociedade seja parte da estratégia, e não uma emergência.
“Os principais desafios para coletar e analisar dados de saúde mental nas forças de segurança pública envolvem questões ética, técnica e institucional. Por exemplo, no contexto de confidencialidade, muitos policiais receiam que informações pessoais prejudiquem suas carreiras, o que leva à subnotificação e resistência. Por isso, é importante transparência sobre objetivos, usos, acessos, benefícios e riscos da coleta dos dados", explica a pesquisadora.
Números
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30% das licenças médicas em uma instituição policial são causadas por transtornos mentais.
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49% é a redução no risco de adoecimento para policiais que recebem elogios ou premiações.
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43 dias é a duração média de um afastamento por saúde mental.
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13% é o aumento na chance de adoecimento associado a mudanças de lotação.
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92% é a probabilidade de um policial com nota baixa no início da carreira e sem elogios vir a desenvolver um transtorno mental.
Hierarquia ou humilhação?
Pesquisa de mestrado aponta que 100% dos policiais de um setor administrativo sentiam-se desmotivados e incompetentes, enquanto gestores confundiam assédio com "disciplina" ou "falta de tato".
O que para um superior pode ser apenas um ato de disciplina ou uma "falta de tato", para o subordinado pode ser uma fonte de humilhação e sofrimento psíquico que dura meses. A dissertação de mestrado "Assédio Moral nas Relações de Trabalho: Um Estudo com Policiais Militares", defendida por Julyana Sueme Winkler Oshiro em 2017, mergulhou na complexa dinâmica do ambiente militar e revelou uma perigosa dissonância: enquanto gestores negam ou minimizam a existência de assédio moral, os policiais na ponta da hierarquia relatam uma rotina de ataques que adoece e desmotiva.
O estudo oferece um raro vislumbre sobre o tema dentro de um setor de telemarketing da Polícia Militar em Campo Grande. Embora focada em um pequeno grupo, a pesquisa expõe uma cultura organizacional onde a linha entre a rigidez hierárquica e a violência psicológica é perigosamente tênue.
O resultado mais alarmante veio dos operadores que responderam ao questionário: 100% deles afirmaram sentir desmotivação pelo trabalho e sentimentos de incompetência profissional, sintomas que, segundo relataram, persistiram por cerca de um ano.
A pesquisa, que combinou entrevistas com gestores e questionários com operadores, pintou dois quadros drasticamente diferentes da mesma realidade.
Chefes e subordinados
Quando questionados sobre assédio, os gestores demonstraram confusão conceitual. Eles tenderam a justificar atitudes hostis como parte da necessária hierarquia e disciplina militar, ou a atribuir o conflito a um "problema de personalidade" do agressor. Em um dos casos relatados por um gestor, uma denúncia de assédio foi reclassificada por ele como mera "falta de tato" e o problema foi "resolvido" com a transferência do suposto agressor, individualizando a culpa e isentando a estrutura de responsabilidade.
Os questionários aplicados aos subordinados contaram outra história. Os dados revelaram a ocorrência frequente de ataques que, segundo a literatura especializada, configuram assédio moral. Entre as situações relatadas "por vezes" ou com maior frequência, estão ataques laborais, por receber críticas exageradas, ter supervisão excessiva e ser alvo de humilhação;
Isolamento social ao ser ignorado por colegas e superiores e ter a comunicação dificultada; e ataques verbais e psicológicos, um participante relatou o uso semanal do telefone para "aterrorizar" e ser alvo de gritos e insultos. Outros mencionaram ameaças e zombaria por incapacidade.
Além da desmotivação unânime, o estudo identificou o impacto direto do ambiente de trabalho na saúde dos policiais. Sintomas como "sensação de nó na garganta" e o aumento do consumo de álcool e tabaco foram apontados como consequências diretas do sofrimento psíquico vivenciado.
"Os sintomas psicossociais manifestados pelos participantes devem-se a problemas das condições de trabalho e da especificidade do ambiente militar, não estão ligados apenas à estrutura de personalidade", destaca a autora na dissertação, contradizendo a visão dos gestores de que o problema é meramente individual.
O estudo levanta uma questão crucial: a cultura militar, baseada em hierarquia e disciplina, pode criar um ambiente propício para a ocorrência do assédio? Segundo a pesquisa, a estrutura rígida e a dificuldade de questionar ordens podem "maquiar" comportamentos abusivos sob o manto da legalidade disciplinar.
Essa "naturalização do poder", como descreve a pesquisa, faz com que atitudes de violência se tornem banais e constantes, dificultando que as vítimas identifiquem e denunciem o assédio por medo de retaliação ou por acreditarem que aquele tratamento faz parte das regras do jogo.
Embora o estudo de Oshiro não permita generalizar seus achados para toda a corporação devido ao número limitado de participantes, ele acende um alerta fundamental. A pesquisa conclui que existe uma "presença de atitudes de violência nas relações de trabalho na instituição militar" e que o sofrimento psíquico é real e mensurável.
O trabalho aponta para a urgente necessidade de discutir o tema abertamente nas corporações, treinar lideranças para diferenciar disciplina de humilhação e criar canais seguros para denúncia, garantindo que a saúde mental de quem serve e protege não seja a primeira baixa no campo de batalha do dia a dia.
Em um estudo de 2022 sobre a saúde mental de policiais militares, dissertacao de mestrado da pesquisadora Carmem Gress, do programa de pós-graduacao em Enfermagem da UFMS, avaliou os níveis de estresse no trabalho e o risco de suicídio na categoria. O estudo analisou dados de 778 policiais e identificou uma relação direta entre o estresse profissional e fatores como resiliência, síndrome de Burnout e até mesmo o risco de suicídio.
A pesquisa concluiu que as condições de trabalho e os mecanismos ineficazes de enfrentamento das adversidades do dia a dia podem levar a um grande sofrimento psíquico. Os resultados do estudo reforçam a necessidade de estratégias institucionais e de saúde pública para promover a saúde mental e prevenir o adoecimento dessa população. O estudo não tem acesso público e a pesquisadora não retornou aos contatos feitos.
O Setembro Amarelo em Mato Grosso do Sul não pode ser apenas um mês no calendário, mas um compromisso contínuo com a saúde de quem trabalha para proteger a sociedade. O debate é urgente e vital para salvar vidas e desconstruir o silêncio que, por muito tempo, tem sido o maior inimigo dos policiais.
As entidades que representam os policiais, como o Sinpol/MS (Sindicato dos Policiais Civis de MS) têm programas próprios para colaborar na saúde mental de seus associados.
“Desde a sua fundação, o Sinpol/MS sempre se preocupou com a saúde mental dos policiais civis. Há 20 anos contamos com uma assistente social dedicada exclusivamente a acolher nossos filiados, e neste ano ampliamos esse cuidado com a criação do NAPS – Núcleo de Apoio Psicossocial. Com uma equipe de psicólogas, o Núcleo não apenas realiza atendimentos, mas também percorre as regionais, levando palestras e orientação para fortalecer nossos policiais em todas as áreas do Estado”, explica o presidente, José Nascimento Sobrinho.
Para o presidente da Adepol (Associação dos Delegados de Polícia Civil de MS), André Matsushita, as pesquisas acadêmicas apontam o que o efetivo já vivencia.
“É inegável que a sobrecarga de trabalho e a necessidade de maior valorização profissional constituem fatores de risco para o aumento de transtornos mentais entre policiais. Todavia, o maior agravante está na falta de reconhecimento de seu valor por parte da sociedade, da mídia e da comunidade, muitas vezes sempre prontas a atacar, criticar e julgar negativamente a atuação policial”.
Mas para ele, o reconhecimento deve ser da sociedade. “O policial sai de casa diariamente para colocar em risco a própria vida a fim de proteger a vida de pessoas que, muitas vezes, não reconhecem nem respeitam seu trabalho. Essa contradição é um fator sério e determinante para o adoecimento mental da categoria. É urgente que a sociedade repense sua postura perante seus policiais. É preciso dar um basta à policiofobia", ressalta.
Representantes das associações de policiais militares foram procurados, mas não retornaram aos contatos.
Procurada para comentar a respeito da postura institucional da saúde mental de sua tropa, a PMMS não se manifestou, assim como a DGPC (Delegacia Geral de Polícia Civil). Uma postura que perpetua o silêncio institucional sobre o problema. "Se o problema não aparece em números, ele não existe. E se o problema não existe, desnecessária qualquer intervenção", aponta um trecho de um relatório do Fórum Brasileiro de Segurança Pública.


