Naquela noite gelada de domingo, a notícia por telefone soou como bigorna. Sentado no degrau da escada, meu pensamento, como um filme em trailer, passou a encenar lembranças da convivência com Rubens Gil de Camillo, amigo arquiteto, que a ligação telefônica acabara de informar seu falecimento.
Lembrei-me quando nos conhecemos em um expediente de trabalho na Prefeitura de Campo Grande: eu, funcionário responsável pela análise e aprovação das construções de obras particulares na cidade; ele, em busca de informações sobre legislações urbanísticas para desenvolver estudos de projetos de arquitetura por aqui.
Era início da década de 80, período em que Rubens retornara a Mato Grosso do Sul após longo período de atuação profissional na capital paulista. Campo Grande ainda trilhava seus primeiros anos como capital do Estado, em processo acelerado de urbanização, que permanece até hoje, atraindo muitos investimentos nos diversos setores da economia. Pela Secretaria Municipal de Obras, passavam diariamente engenheiros e arquitetos acompanhando seus processos de licenciamento de obras. Nessa época pude, como arquiteto também recém-chegado e funcionário da prefeitura, conhecer muitos colegas que são amigos até hoje. Muitos encontros aconteceram entre mim e Rubens, que depois estenderam-se até a sala de professores do curso de Arquitetura que se iniciava no antigo CESUP. Era um ambiente novo, de encontro entre arquitetos, onde ocorriam discussões sobre a cidade, ensino e profissão, que motivaram Rubens a engajar-se, também, na política de classe.
O IAB – Instituto de Arquitetos do Brasil - era a mais importante entidade representativa e de congregação dos arquitetos, com intensa atuação no Estado. Desse tempo, foram incontáveis os congressos e reuniões nacionais do IAB que participamos juntos. Em seu escritório, nos altos da Rua Antônio Maria Coelho, nos reuníamos preocupados com o profissional Arquiteto frente ao mercado de trabalho e a qualidade dos serviços prestados. Desses encontros, e por iniciativa do próprio Rubens, surgiu a ASEA – Associação Sul Matogrossense de Escritórios de Arquitetura, sendo ele seu primeiro presidente. Foi a primeira e única entidade até hoje a reunir os arquitetos sul-matogrossenses organizados em empresas de arquitetura. Profissionalmente, é notável a qualidade do conjunto de sua produção arquitetônica, já reconhecida por muitos e traduzida pelos edifícios emblemáticos que projetou. Só para não deixar de citar aqui algumas em Campo Grande: Palácio Popular da Cultura, Sede da FIEMS, Sede da Receita Federal, Apart Hotel Bahamas e inúmeras residências.
Pessoalmente, seu carisma, bom humor e disposição para a vida eram admiráveis. Com grande capacidade de fazer amigos, gostava de conversar e das coisas simples da vida. Com certa irreverência, em seu escritório, quando as opiniões sobre alguma decisão de projeto dividiam-se entre ele e equipe, convocava a copeira para dar o voto de minerva. Seu espírito corajoso e pronto para desafios era demonstrado também em sua preferência por esportes nem tanto comuns. Descobriu a pesca submarina e apaixonou-se pelo mar e por Maranduba, praia do litoral paulista. Lá, nos anos sessenta, construiu uma linda casa (publicada na Acrópole, antiga revista de arquitetura) para convívio familiar e mais proximidade com as aventuras marítimas, que incluía até navegações realizadas em temporada de pesca. Tanto a casa em Campo Grande, quanto a da praia - onde a seu convite certa vez me hospedei em férias -, além de serem lições de arquitetura, refletiam bem o jeito de ser simples e informal de Rubens e sua família.
Sempre imaginei o quanto era difícil para ele a distância literal do mar: não tardou em encontrar, por aqui, novos desafios. Causavam admiração suas pescarias de mergulho adaptadas aos rios, baías e corixos do Pantanal, realizadas entre camalotes, galhos, sucuris, piranhas e jacarés. Mesmo assim, Rubens fez entre amigos e filhos de amigos alguns corajosos seguidores, que participavam juntos da aventura.
Além dos mergulhos pantaneiros, mais recentemente descobriu a aviação. Não foram poucas as vezes que convidou-me para que eu “fiscalizasse” do céu, a bordo do seu ultraleve, as obras do grande lago iniciadas no Parque das Nações Indígenas, projeto que realizei junto a meu escritório na época.
Ainda sentado no degrau da escada, com o telefone na mão, lembrei do seu doutourado na USP, planejado para iniciar na volta da pescaria, que infelizmente, como o telefonema informara, foi a última.
Agora, passados 10 anos, ainda fico a recordar os encontros em nossos escritórios ou em happy-hours, que hoje, vez ou outra, realizo na companhia dos seus filhos arquitetos Rubens Fernando e Gil Carlos, onde nunca faltam entre nós lembranças saudosas e a sensação velada e silenciosa de uma cadeira vazia.
Bosco Delvizio, arquiteto e [email protected]