Quem vai ao hospital da Missão Evangélica Caiuá, na região norte de Dourados, e dedica um olhar mais atento às instalações da unidade e aos produtos e atendimentos disponíveis para os 17 mil indígenas da cidade, pode se surpreender ao saber que a organização não-governamental, ligada à Igreja Presbiteriana do Brasil, tem R$ 508,1 milhões para receber do governo federal, por meio de nove convênios, todos para o estado de Mato Grosso do Sul, até 2021. Desde 2019, quando todos estes vínculos foram feitos ou renovados, R$ 305,5 milhões já foram repassados para a Missão.
Os mais de meio bilhão de reais que a Missão Caiuá tem para receber só em Mato Grosso do Sul não são visíveis na unidade dedicada a atender os índios de Dourados. Desde o início deste mês, o Conselho Regional de Enfermagem (Coren-MS) denuncia a falta de equipamentos de proteção individual (EPIs) para profissionais de saúde do hospital. A mesma unidade de saúde, porém, chegou a receber milhares de equipamentos do frigorífico JBS. Foi uma funcionária do frigorífico, aliás, a primeira indígena diagnosticada com Covid-19 em Mato Grosso do Sul, há um mês.
Do primeiro diagnóstico até ontem, a doença causada pelo coronavírus avançou na comunidade indígena. Ontem, o Ministério da Saúde confirmou 112 casos de índios com Covid-19 no Estado, a maioria (95) em Dourados.
Em janeiro de 2019, um mês depois de ter tomado posse como ministro da Saúde da gestão Jair Bolsonaro, Luiz Henrique Mandetta (que deixou o Ministério da Saúde em abril) questionou o alto volume de recursos que a Missão Caiuá recebia na época. “Dourados é a sede da ONG que leva mais recursos, e eu não posso questionar? E eu tenho de falar: deixa assim porque eu não quero retrocesso? Que retrocesso? Alguém me explica? Se alguém não me convencer, eu vou falar e vou provocar, sim!”, afirmou na ocasião. No mesmo ano, Mandetta, como ministro da Saúde, renovou todos os convênios com a missão até 2021. São os mesmos convênios de agora, orçados em R$ 508,1 milhões.
A Missão Evangélica Caiuá é responsável pela saúde dos indígenas em Mato Grosso do Sul. Ela tem convênios em quase todo o País. Em 2017, estes convênios somavam R$ 2 bilhões. Ontem, havia convênios ativos de Roraima ao Rio Grande do Sul.
O Correio do Estado procurou a Missão Evangélica e pediu que ela detalhasse a aplicação dos recursos e respondesse às reclamações, mas não obteve resposta oficial da organização não-governamental até o fechamento desta edição. No site da ONG, na página que trata de transparência, quem busca informações detalhadas é redirecionado ao Portal de Transparência do governo federal.
Em Mato Grosso do Sul, a missão atende 83 mil índios de 99 aldeias. O Correio do Estado apurou que a maioria dos recursos vai para pagar salários de mais de 700 funcionários. Também há verbas para serviços de consultoria, despesas com alimentação, combustível, diárias, passagens e materiais didáticos.
PRECARIEDADE
Na sexta-feira, o hospital da Missão Evangélica tinha três internados com Covid-19. A unidade tem capacidade para abrigar 20 pacientes, sendo 16 adultos e quatro crianças. Não há nenhum leito de unidade de terapia intensiva (UTI), extremamente necessário para casos graves da doença.
De acordo com o chefe de enfermagem Soren Lima, a unidade deveria ser habilitada com leito de atendimento grave, mas ainda não conseguiu paramentação necessária para o investimento. No hospital há apenas dois médicos para atendimento a contaminados pela Covid-19, que atuam entre 5h e 1h30min do dia seguinte. Líderes da reserva reclamam que, antes, o hospital funcionava em um período de 24 horas, mas Soren justificou a interrupção no início da madrugada em razão da falta de segurança.
Por lá, quem chega com Covid-19 ou qualquer outro tipo de necessidade de atendimento entra pela mesma porta, é atendido na mesma recepção e fica em contato com vários pacientes em corredores comuns. A reportagem apurou que uma tenda de triagem até foi instalada, no entanto, ainda não estava funcionando na sexta-feira. Soren afirmou que o serviço começaria a partir das 16h de sexta-feira, mediando o acesso de populares com sintomas respiratórios por outro lado.
Um funcionário ouvido pela reportagem relatou que, assim que a pandemia chegou na reserva, o fornecimento de EPIs era um grande problema. Somente após pressões sobre a Secretaria de Saúde Indígena (Sesai) e sobre o município esses instrumentos passaram a ser fornecidos. No entanto, ele ressaltou que a sociedade organizada tem sido forte aliado no apoio aos profissionais que atuam na comunidade indígena. Empresas e entidades têm doado máscaras e insumos aos agentes.
Ele ainda relatou que não foi feito nenhum treinamento com os profissionais para capacitação específica no atendimento a pacientes com Covid-19. “Estamos apenas cumprindo os protocolos da Sesai, mas falar que teve treinamento, isso não teve”, afirmou.
O governo do Estado, por meio da Secretaria Estadual de Saúde, busca habilitar leitos no Hospital Universitário de Dourados para atender exclusivamente pacientes indígenas.