Muito antes da inauguração do Estádio Pedro Pedrossian, em 1971, outro morenão teve o mérito de atrair milhares de fãs e se tornar bem conhecido dentro e fora de Mato Grosso do Sul. Trata-se do ator, produtor e diretor de cinema David Cardoso, hoje com 77 anos e 80 filmes no currículo.
Quando foi convidado por Glauco Mirko Laurelli, diretor de “A Moreninha” (1970), para o papel principal do filme, com Sônia Braga, David já tinha atuado em uma dúzia de produções na frente e, principalmente, atrás das câmeras. Havia se destacado no elenco do longa-metragem “Agnaldo, Perigo à Vista” (1969), como o vilão Baby Face, que tem a missão de liquidar o personagem do título, vivido pelo cantor Agnaldo Rayol, um astro da música que fizera mal à filha de um paraibano ciumento (Milton Ribeiro).
Íntimo dos sets paulistas desde 1963, quando começou no cinema, sob as bênçãos de Mazzaropi e Walter Hugo Khouri, Cardoso também já tinha visto de perto o estrelato de Hollywood, durante uma temporada de dois meses nos EUA trabalhando como modelo.
Ou seja, levava na bagagem experiência e aura de galã. Mesmo assim, ele não esconde a emoção ao falar sobre “A Moreninha”. “Quando o Glauco e o [Luís Sérgio] Person [produtor do longa] me chamaram, nem acreditei”, relembra o ator. “Disse a eles que eu era xucro, pé-duro, não sabia dançar. Mas garantiram que eu teria uma excelente professora para as cenas de baile e, de fato, tive: a coreógrafa Jura Otero, que ensaiou com a gente por um mês”.
Baseado no romance de mesmo nome, escrito por Joaquim Manuel de Macedo (1820-1882), obra lançada em 1844 e que marca o início do romantismo na literatura brasileira, o filme é um raro exemplo do gênero musical na cinematografia brasileira.
Na trama, o jovem Augusto (Cardoso), estudante de Medicina do Rio de Janeiro, aposta com amigos que deixará a vida de conquistador e que finalmente vai se apaixonar. Seu coração, de fato, é fisgado durante um baile na paradisíaca Ilha de Paquetá, pelos modos e beleza de Carolina (Sônia Braga), a moreninha em questão, que guarda um segredo sobre o passado de Augusto, não facilita os movimentos do rapaz.
Tudo embalado por canções, danças e diálogos de época, muitas vezes rimados, sempre em tom leve e permeado por uma certa picardia. David não perde o compasso. Sua voz durante as canções é dublada por, adivinhem, Agnaldo Rayol. “Mas é claro que ele canta em um tom mais abaixo, né?”, diverte-se o ator, nascido em Maracaju, foi para São Paulo estudar e, aos 20 anos, acabou trocando o curso de Direito pelo sonho de brilhar na telona.
Premiado como melhor filme pelo júri popular no Festival de Brasília, “A Moreninha” estreou em circuito, já no início de 1971, no Rio de Janeiro, e arrebatou grandes plateias em todo o Brasil, repercutindo, inclusive, internacionalmente.
“A estreia em São Paulo foi um acontecimento, o Cine Ipiranga foi pintado e remodelado para receber o filme e as filas davam voltas no quarteirão”, conta David, que considera a “esmerada” produção surpreendente ainda em tempos atuais, dado o requinte da direção de arte (Flávio Phebo), fotografia (Rodolfo Icsey) e números musicais.
Em Campo Grande, a estreia, também em grande estilo, foi no suntuoso Cine Alhambra, na Avenida Afonso Pena, seguindo em circuito para outras salas, como o Rialto e o Santa Helena, na Rua Dom Aquino. A película permaneceu em cartaz por vários meses.
O repertório de canções ficou a cargo de Cláudio Petraglia, que havia encenado “A Moreninha” no teatro, com Marília Pêra no elenco. Foi essa montagem que encantou Laurelli e despertou no diretor o desejo de realizar uma adaptação cinematográfica, na verdade, a terceira tentativa de levar a envolvente história de Joaquim Manuel de Macedo para o universo das imagens em movimento. Nem tudo, porém, era um mar de flores no momento das filmagens.
Quem trabalha no meio sabe que em qualquer produção quase nunca é. “Nas cenas de dança, de minha parte, não teve sentimento algum”, revela o astro veterano.
“E a convivência era difícil, porque demorava muito para montar o equipamento de iluminação, figurino, maquiagem; uma vez foram seis horas de espera para iluminar e o elenco já pronto esperando. Resultado, na hora de rodar, os atores, de tão cansados, disseram que não dava e não filmamos”.
Outro fato curioso: embora o longa-metragem tenha transformado Paquetá em paisagem ícone do cinema e que, aliás, cinco anos depois a Globo produziria uma novela também de grande sucesso, a partir da mesma trama de Macedo, as filmagens passaram longe da ilha. As cenas externas foram realizadas em Parati (RJ). E as internas, em um casarão no bairro do Morumbi, em São Paulo.
A cena final, de ares modernos, com a câmera abrindo para mostrar toda a equipe de filmagem, foi rodada nos antológicos estúdios da Vera Cruz (SP). O orçamento apertado permitiu à produção uma quantidade bem limitada de filme virgem, apenas 35 mil metros de película, quando normalmente se dispunha de 100 mil metros para rodar um longa-metragem. Então, não havia chance de erro.
Mas Laurelli, além de diretor, também tinha vasta experiência como montador e também assinava o roteiro. Portanto, tinha o filme todo na cabeça, como conta em sua biografia. “Eu já havia trabalhado anteriormente com David em dois filmes do Mazzaropi: ‘O Lamparina’ e ‘Meu Japão Brasileiro’. Além disso, fisicamente, ele ficava muito bem no papel”, disse o diretor, falecido em 2013.
“A minha cena preferida é quando o Augusto desabafa com a avó da Carolina”, diz David. A avó é a personagem Donana, interpretada por Sônia Oiticica, reconhecida atriz no teatro, que não pisava em um set de filmagens há 30 anos, aceitou fazer “A Moreninha”.
Outras revelações foram a bailarina Vera Manhães, mãe de Camila Pitanga, e Carlos Alberto Riccelli. Ambos fizeram sua estreia no cinema nesse celebrado musical de época. “Foi o filme certo, na hora certa para o lançamento daquele grupo maravilhoso de artistas.
”Daí para frente, o Augusto de “A Moreninha” viraria, de uma vez por todas, o macho man, que por mais de uma década mexeu com o imaginário de multidões nas comédias e dramas tão populares da pornochanchada, como “Os Maridos Traem e as Mulheres Subtraem”, “A Infidelidade ao Alcance de Todos” e “Dezenove Mulheres e Um Homem”.
STAN-UP
Em tempos de pandemia, David Cardoso ostenta, com muito bom humor, um vigor invejável. E maquina novos projetos. “Não vou dizer que a vida não mudou, mas tenho uma saúde invejável. Levanto 80 quilos no supino e não passo um dia sem malhar, isso ajuda, mas mesmo assim tenho que tomar cuidado, o psicológico abala.
Sabe o que é preparar um show, com banda, ensaio, banner, dançarina e ter que cancelar?”, desabafa. Show? Que show, David? O ator deixa escapar, no fim da conversa, o lançamento do seu primeiro espetáculo em formato stand-up: “David Cardoso – o Rei da Pornochanchada”.
O projeto tinha estreia prevista para outubro, em São Paulo, mas teve de ser adiado, possivelmente para o verão, em decorrência da Covid-19. “Você vai me ver louco no palco, pois talvez seja o último trabalho da minha vida”, promete. “Conto histórias sem papas na língua, prostituição, drogas, homossexualidade, entra tudo.
Também danço rock, tango [com a bailarina Fernanda Gomes] e toco uma valsa e um chamamé [o clássico Paraguaia Linda] com o meu acordeon Scandalli, que ganhei aos nove anos de idade”. O ponto alto do espetáculo, arrisca o ator, é quando imita o ídolo Amácio Mazzaropi (1912-1981), um dos mais populares astros do cinema brasileiro de todos os tempos. É esperar e pagar para ver.
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