Um dos conceitos mais populares da psicanálise, o complexo de Édipo é recorrente no enredo de filmes, séries e outras produções audiovisuais, marcando presença também em contos, romances e, sobretudo, em montagens teatrais, que, ao longo de séculos, tomam como referência o texto original – “Édipo Rei” – que Sófocles (406 a.C.–497 a. C.) escreveu, justamente, para ser encenado.
Lançamento recente da Aller Editora, “O Complexo de Édipo” (2021, 112 páginas, R$ 49,90 ou livro digital por R$ 34,90), do psicanalista Ivan Ramos Estevão, retoma o debate sobre o conceito propondo abrir os horizontes da discussão.
Voltada para o público mais neófito no assunto, a publicação foi pensada com o objetivo de mobilizar leigos e novos estudantes em torno de uma perspectiva que se estabelece a partir de um panorama das construções de Freud e Lacan sobre o Édipo.
DIVÃ E PALCO
A teoria pioneira do austríaco Sigmund Freud (1856-1939), que transforma o personagem da tragédia grega em nome de um conceito polêmico dentro de um universo, por sua vez, já bastante controverso como o da psicanálise, esboçaria os fatos fundamentais do complexo de Édipo somente no finzinho do século 19; ou seja muito depois de a peça de Sófocles, escrita por volta do ano 427 da era pré-cristã, ter chegado aos palcos.
Na peça, ao consultar o oráculo, o rei Laio descobre o seu infortúnio. Segundo a previsão, o monarca será assassinado pelo filho, Édipo, que então se casaria com a própria mãe e esposa de Laio, a rainha Jocasta.
Édipo sobrevive à tentativa do pai de eliminá-lo e, mais adiante, já homem-feito, ao saber da tragédia iminente, foge, mas acaba matando o pai em um duelo. Em Tebas, resolve o enigma da esfinge e salva a cidade.
Sua recompensa é a mão de uma rainha, que somente 15 anos depois descobre ser sua mãe. Jocasta, então, comete suicídio, e Édipo fura os próprios olhos e torna-se um andarilho errante.
O COMPLEXO
Na psicanálise, de modo resumido, o complexo de Édipo é aquele em função do qual o menino embute no amor pela mãe sentimentos de ciúme ou aversão pelo pai. Essa manifestação costuma ocorrer em uma das fases do desenvolvimento psicossexual do indivíduo, o estágio fálico, dos três aos cinco anos.
Embora contestada por Freud, a contrapartida feminina foi conceituada por outro célebre psicanalista, o suíço Carl Gustav Jung (1875-1961). Outro detalhe: por transferência, o complexo pode ocorrer também na interação com quem cuida da criança, e não somente com pais e mães biológicos.
Ivan Estevão inicia seu livro esclarecendo que a teoria edípica, embora amplamente conhecida, vai muito além do que se ouve falar sobre ela; uma coleção de arriscados chavões que muitas vezes confundem e deturpam toda a formulação. Resumi-la à relação dos pais na vida psíquica da criança e aos afetos de amor e ódio é simplório e caricatural, aponta Estevão.
O autor escreve que, segundo a psicanálise, a resolução do conflito edípico é estruturante para o sujeito. Para tornar o conteúdo do livro acessível a quem se aproxima do tema pela primeira vez, o especialista divide “O Complexo de Édipo” em duas partes.
LACAN
Na primeira, Estevão mostra o caminho que Freud percorreu na construção desse conceito e os desdobramentos dele advindos. Na segunda parte, apresenta a perspectiva “mais além do complexo de Édipo”, a partir das contribuições feitas por Lacan.
“Tal arquitetura permite vislumbrar os problemas que levaram a se pensar o Édipo, o modo como ele é tratado e, por fim, suas consequências e seus impasses atuais”, afirma o também psicólogo, que é membro da Escola de Psicanálise dos Fóruns do Campo Lacaniano (EPFCL) e do Fórum do Campo Lacaniano de São Paulo.
A intenção do autor é instigar uma investigação mais profunda, detalhada e explicativa do complexo de Édipo. E, para isso, apresenta os desenvolvimentos de Freud sobre a sexualidade infantil, o narcisismo, o complexo de castração, além de analisar conceitos como “eu ideal”, “ideal de eu”, “eu e supereu”.
O psicanalista revisita ainda noções como a negatividade constitutiva, a concepção estrutural e os tempos do Édipo marcados por Jacques Lacan (1901-1981).
Trata-se de outro fera da psicanálise, que aproximou a disciplina das ciências humanas e teve a pachorra de questionar alguns aspectos dos estudos de Freud. O francês considerou que o complexo de Édipo não passa de um “mito freudiano”. O conceito seria, assim, uma narrativa simbólica, na qual Freud descreve os vínculos eróticos conflituosos e ambíguos que a criança estabelece com os pais.
Ao propor uma estrutura para o complexo, Lacan chegou à sua teoria dos três tempos do Édipo: “eu sou o falo”; “tenho ou não tenho o falo?”; e “não tenho o falo”. O terceiro tempo propõe, como desdobramento, que o “objeto mágico” poderá ser encontrado em um caminho do desejo indicado pelo pai.
CURTINDO FREUD
A questão é que, já em Freud, os processos conscientes são atos isolados, apenas frações da totalidade da vida psíquica, na qual predominam processos inconscientes, aqueles que geralmente são dominados por tendências sexuais.
É do conflito entre os impulsos sexuais (inconsciente) com os códigos morais e sociais que surgem os fenômenos estudados pela psicanálise, como os sonhos, os atos falhos, as doenças mentais, a sublimação e eles, os complexos.
O embate das pulsões mais íntimas com as regras da coletividade abre uma fresta que se mostrou de grande apelo na indústria cultural. Clássicos do cinema, como “Sopro no Coração” (1971), “La Luna” (1979) ou “Psicose” (1960), diversificam, na chave da ficção, o imbróglio freudiano do complexo de Édipo. No Brasil, fez estrondoso sucesso a telenovela “Mandala” (Globo, 1987/88).
Escrito por Dias Gomes, o folhetim adapta o amor de Édipo e Jocasta para uma “realidade” em território verde e amarelo, com Felipe Camargo no papel do filho e Vera Fischer na pele da mãe. “Mandala” foi exibida ainda na época de vigência da censura federal e, apesar de sofrer muitos cortes, não somente pela menção à tragédia grega, não deixou de mostrar o casal proibido aos beijos.
Na Netflix, a série “Freud” (2020) avança em outros conceitos do psicanalista nascido em Viena, como o faz o diretor do John Houston no longa-metragem “Freud, Além da Alma” (1962).
EQUÍVOCO
Mas, embora funcione como entretenimento de primeira, a farra na tela é vista com reservas quando aborda o complexo de Édipo. “Sendo universal e fundamental para a constituição do psiquismo, o conceito, atualmente bem difundido, inclusive entre leigos na psicanálise, não deve ser entendido ao pé da letra”, afirma a psicóloga Adriana Sordi, que é professora na Unigran.
“Afinal, a psicanálise diz respeito a uma compreensão simbólica de como se dá a constituição do psiquismo, e nesse sentido, percebo as compreensões superficiais e equivocadas de um conceito tão profundo e complexo como é o complexo de Édipo”, diz Sordi, que integra o Corpo Freudiano Escola de Psicanálise.