A beleza rústica e o jeitão meio bronco foram responsáveis por fazer a carreira de Malvino Salvador deslanchar na tevê. Em uma trajetória que já dura 15 anos, o ator acabou se limitando a heróis e vilões sem muitas nuances, mas que lhe garantiram repertório e visibilidade. Agora, na pele do homossexual reprimido Agno, de “A Dona do Pedaço”, ele comemora a oportunidade de viver um tipo mais complexo que o usual. “Agno é o típico sujeito que se boicota ao longo de grande parte da vida por não conseguir viver e assumir a própria sexualidade. Quando decide viver, ele acaba tornando-se um grande egoísta. É um sujeito entre o amor e o desprezo”, conceitua Malvino.
As Artes Cênicas cruzaram o caminho de Malvino por acaso. Nervoso a cada novo teste para fotos e campanhas publicitárias, o então modelo recorreu a um curso de atuação para se “soltar” mais. “Quando vi, já não fazia mais sentido ser modelo e estava completamente envolvido pela profissão de ator”, explica. Natural de Manaus, capital do Amazonas, a estreia na tevê foi em 2004, no bem-sucedido “remake” de “Cabocla”. Na sequência, participou de produções como “Alma Gêmea” e “A Favorita”, até que chegou ao seu primeiro papel protagonista em “Caras & Bocas”, de 2009. “Um personagem foi me preparando para o outro. Errei e acertei, mas sempre segui em frente”, analisa o ator que, aos 43 anos, segue como um dos mais requisitados de sua geração. “Sou meio operário mesmo. As pessoas sabem que não fujo de trabalho. Acho que é por isso que sempre tem alguém chamando”, diverte-se.
P - “A Dona do Pedaço” é sua quinta novela sob o texto de Walcyr Carrasco. O que o atrai para as obras do autor?
R - Uma série de fatores. O principal é o fato dele confiar no meu trabalho. Sinto isso pela gama de personagens diferentes que ele me propõe a cada nova produção. Foi ele que me fez fazer comédia pela primeira vez, com o Vitório de “Alma Gêmea”, que também apostou em meu nome para herói de “Caras & Bocas” e “Amor à Vida”. Fiquei muito encantado quando ele começou a me falar do Agno. Sem dúvida, é o papel mais complexo que já fiz.
P - Por quê?
R - É um personagem com muitas nuances. Não chega a ser um vilão, tampouco mocinho. Existe amor dentro dele a partir da relação com a filha. Em contrapartida, também tem muita aflição e insegurança por conta dos anos perdidos em um casamento fadado ao fracasso. Por fim, a sexualidade dele é marcada por muito tempo de repressão e tristeza que ele mesmo se impôs. No momento em que ele tem coragem de se assumir, acaba sendo injusto com outras pessoas.
P - A televisão costuma retratar personagens gays de forma bem estereotipada. Como você enxerga o Agno nesse contexto?
R - Acredito que o Walcyr escolheu um caminho totalmente diferente. Agno é um personagem muito possível e está por aí pelo cotidiano. Existem muitos homens que tentam renegar a própria natureza e se casam, têm filhos, mas uma hora essa verdade fala mais alto. Meu trabalho de atuação respeita esse tom de realidade do papel, tanto que ele equilibra muito bem suas diversas facetas.
P - Sendo um dos principais galãs da Globo, você acha que existe alguma dose de ironia na sua escalação para o Agno?
R - Eu achei ótimo. Acho que é muito coerente com a diversidade que está sempre presente nas tramas do Walcyr e no quanto ele me instiga como ator. Não quero fazer sempre o mocinho heroico, é muito cansativo ficar se repetindo. Então, além de provocar o público, é um trabalho que subverte um pouco a minha carreira e isso é muito saudável.
P - Existe uma expectativa em torno de um beijo entre Agno e Rocky (Caio Castro). Você está preparado para a cena?
R - Claro. É um beijo técnico (risos). O questionamento massivo em torno do beijo só evidencia o quanto o Brasil ainda é um país cheio de preconceito. Os conflitos entre esses personagens são mais importantes que o fato de eles se beijarem. Se eu tivesse problemas em fazer alguma cena que envolve a rotina do papel, não teria aceitado e nem sido convidado. É um assunto tranquilo e já “antigo” dentro da Globo.
P - Você chegou a buscar inspirações em obras de temática LGBT para o papel?
R - Privilegiei neste trabalho as referências que me cercam. Li alguns livros durante a vida sobre o assunto e a base da minha atuação foram conversas informais, cotidianas mesmo, com amigos gays. Minha principal preocupação foi entender o que leva algumas pessoas a se boicotarem por tanto tempo. O Agno tenta compensar com sucesso profissional toda a tristeza de não ter vivido sua sexualidade plenamente.
P - Este ano você comemora 15 anos de televisão. Qual o balanço que você faz do período?
R - Eu olho para trás e fico muito feliz com tudo o que aconteceu. Fui aprendendo do melhor jeito: fazendo. Agradeci os elogios, filtrei as críticas que realmente era válidas e acho que fui crescendo como ator. Não sou mais tão afoito e ansioso como antigamente. Passei boa parte desses 15 anos emendando trabalhos porque precisava realmente ganhar repertório e experiência. Me sinto mais maduro e seguro em cena. O Agno é um reflexo desse momento.
P - Como assim?
R - Acho que só depois de passar por tantas experiências de trabalho é que tenho vivência para encarar um papel mais complexo. Hoje, sei que não preciso ser o protagonista para ter o melhor papel da produção. É claro que existem mocinhos incríveis, mas é nos personagens secundários que estão os grandes tesouros. Aprendi a administrar melhor meu tempo, eliminei qualquer traço de estrelismo e estou disposto e com muita vontade de fazer coisas cada vez mais diferentes. Viver esse personagem é uma ótima forma de completar 15 anos de tevê.
Pronto para o combate
Malvino Salvador é íntimo do universo das lutas e treinos do núcleo da academia de “A Dona do Pedaço”. Tanto que, para realizar as cenas de boxe que divide com Caio Castro, o ator nem precisou de qualquer preparação específica. A paixão pelo esporte surgiu ao viver o pugilista Régis de “Sete Pecados”, trama de 2008. “Já era fã de boxe, gostava de ver e gravar as lutas. Esse amor só cresceu quando me preparei para fazer a novela e continuou depois que a trama acabou”, conta.
Em casa, quando o assunto é luta, o ator ainda pode contar com a consultoria de sua esposa, Kyra Gracie, pentacampeã mundial de jiu-jítsu e integrante do famoso clã Gracie. “A gente treina muito juntos. O lado bom disso é ter mais momentos a dois. Por conta de toda essa experiência, já chego no estúdio pronto para gravar”, ressalta.
Posto mais alto
Malvino Salvador fala com propriedade sobre o posto de protagonista. A primeira vez na função foi com o frustrado Gabriel de “Caras & Bocas”, novela exibida em 2009. De “cara”, o ator ficou surpreso com o volume de trabalho e cenas para gravar do mocinho. “Nunca li tanto. Fiquei meio sem acreditar quando recebi o primeiro bloco de capítulos. Foi onde aprendi a ter disciplina como ator”, analisa.
Já mais experiente, Malvino conseguiu curtir mais os bastidores de tramas como “Amor à Vida”, de 2013, e “Haja Coração”, de 2016. Para o ator, ao longo dos anos, com o maior investimento da Globo na preparação do elenco, ele se sentiu mais tranquilo para assumir a responsabilidade de encabeçar uma novela. “Apesar de ser um trabalho coletivo, é a cara do casal protagonista que fica em evidência ao longo dos meses de exibição. Chegar ao ‘set’ mais preparado e em sintonia deixa tudo muito mais leve”, garante.
Instantâneas
# Antes de seguir a carreira de ator, Malvino trabalhou como atendente de banco e estudava Ciências Contábeis na Universidade Federal do Amazonas.
# O crescimento de trabalhos como modelo fez com que Malvino trocasse Manaus por São Paulo.
# Paralelamente ao trabalho nas passarelas e campanhas publicitárias, ele se inscreveu na famosa Escola de Atores Wolf Maya.
# O ator estreou no teatro seis meses depois de iniciar o curso, em uma nova adaptação do clássico “Blue Jeans”, em 2003.