Série da Netflix transforma uma comédia sobre culto em ensaio sombrio sobre mulheres que encantam e são descartadas
Sereias estreou na Netflix esta semana com uma série que, à primeira vista, lembra The Stepford Wives, mas que também aborda de forma escancarada o universo de cultos como o NXIVM (citado nominalmente) e a Cientologia.
Mais que isso, é um estudo sobre misoginia, manipulação e os mecanismos psicológicos que atuam sobre pessoas traumatizadas, com desvios de caráter — ou com tudo isso misturado. O destaque está no elenco liderado por três gerações de grandes atrizes: Julianne Moore, Meghann Fahy e Milly Alcock — especialmente as duas últimas, que entregam atuações poderosas.
Primeiro: que escolha de elenco incrível. Meghann e Milly realmente parecem irmãs. Ambas despontaram internacionalmente em séries da HBO Max — Meghann na segunda temporada de The White Lotus e Milly em House of the Dragon — e estão completamente transformadas aqui, provando mais uma vez seus talentos.
A série gira em torno do conflito de Devon DeWitt (Fahy), cuja vida caótica atinge o limite quando ela pede ajuda à irmã mais nova, Simone (Alcock), e só recebe uma cesta de frutas como resposta.
Impulsiva, ela atravessa o país para confrontar Simone, que agora vive em uma ilha remota como assistente pessoal da guru de autoajuda e “preservacionista” Michaela Kell (Moore), cercada por seguidoras devotadas.
Desde sua chegada, Devon percebe que há algo de errado: o ambiente tem as marcas de um culto, e Simone parece outra pessoa — submissa, reverente, enredada em uma relação simbiótica (e disfuncional) com Michaela. Devon decide então resgatar a irmã e desmascarar a líder. Mas, é claro, nem tudo sai como o esperado.
Criada por Molly Smith Metzler (Maid), Sereias é mais do que uma comédia sombria — é um retrato atual dos perigos de grupos abusivos que se camuflam sob discursos inspiradores e promessas de cura emocional. “Há momentos dramaticamente verdadeiros que causam desconforto.
‘Operístico’ é uma palavra que gosto de usar para descrevê-la. É uma comédia sombria de verdade — com uma vibe de mitologia grega”, disse a autora ao site Tudum. Curiosamente, Sereias nasceu como uma peça de teatro que Metzler escreveu enquanto estudava na Juilliard, originalmente intitulada Elemeno Pea.
Cinema B+: Olha o canto das sereias - Divulgação NetflixO título da peça aludia à fábula da princesa e a ervilha, e a montagem de 2011 foi elogiada por críticos que destacaram sua habilidade em equilibrar caricatura e profundidade emocional. O que Metzler faz — tanto na peça quanto na série — é algo raro: transforma personagens que poderiam facilmente ser reduzidas a vilãs ou estereótipos em figuras densas, contraditórias e, acima de tudo, humanas.
A trama se desenrola ao longo de um fim de semana na mansão à beira-mar da família Kell, onde Devon tenta decifrar quem é realmente Michaela — e o que está acontecendo com sua irmã. Casada com o bilionário Peter Kell (Kevin Bacon), Michaela — ou “Kiki”, como prefere ser chamada — é sedutora, afiada e perfeitamente ciente de cada gesto de Devon.
Em apenas cinco episódios, as vidas dessas mulheres mudam radicalmente — e de forma imprevisível. Nenhuma delas é exatamente quem aparenta ser. (E não, não darei spoilers.)
Entre os muitos temas que a série aborda, um dos mais sensíveis e contundentes é o valor que a sociedade patriarcal impõe às mulheres a partir da maternidade.
Em Sereias, juventude, beleza e fertilidade funcionam como moedas de troca — especialmente no jogo do casamento. E por mais que as protagonistas sejam sereias que encantam, ainda são os homens que determinam qual delas reina — e por quanto tempo — antes de substituí-las por outra. (Opa. Talvez um pequeno spoiler.)
Metzler entrega uma sátira amarga, visualmente elegante, que evoca mitologia, teatro e crítica social com a mesma intensidade. E no fim, é impossível assistir sem se perguntar: quem está mesmo no controle — e a que custo?