Pandemia, circulação restrita nas ruas, muita gente passando mais tempo em casa. Novos tempos, novos hábitos. Ou a retomada de antigos prazeres, como uma boa leitura no aconchego seguro do lar. Após o susto inicial, com uma queda no faturamento que, em alguns casos, chegou a 80%, as poucas livrarias ainda em atividade no centro de Campo Grande retomam o movimento de clientes e estabilizam suas vendas de exemplares novos e usados.
A capital do Estado é uma das cidades do País com o menor índice de analfabetismo, ocupando a posição de número 37 dentro de um total de 5.570 municípios brasileiros, conforme o Departamento de Informática do Sistema Único de Saúde (Datasus).
Na Maciel Livros, a queda foi vertiginosa especialmente entre os meses de março e abril, quando o comércio permaneceu fechado dias seguidos. Mas progressivamente houve uma “estabilização”. É o que aponta Samuel Duarte, gerente da loja, uma das mais tradicionais de Campo Grande, com um acervo de 60 mil títulos, sem contar DVDs e CDs.
“A partir desse período, o faturamento voltou a se restabelecer e, com a pandemia, as vendas on-line, que representam quase 30% do fluxo, aumentaram 40%”, contabiliza Duarte. Além dos mesmos títulos de sempre, “que ensinam a ganhar dinheiro ou da linha de otimismo”, temas relacionados à Covid-19, a exemplo da gripe espanhola – 50 milhões de mortos entre 1918 e 1920 –, entraram na lista de mais procurados.
Na Hamurabi, que também oferece artigos musicais, a média de vendas foi mantida. O problema é que já andava bem abaixo do ideal há tempos, segundo conta o proprietário da livraria, Bruno de Pino. “Estou pagando as contas, mas, se continuar assim, não sei. Temos as vendas pela internet, mas não dá para manter só com elas. Sábado, por exemplo, é dia de movimento”, sinaliza o lojista, lembrando do decreto municipal, vigente no mês de julho, que fechou o comércio nos fins de semana.
“Na verdade, além do corona, teve a reforma da [Rua] 14 [de Julho]. Então, o que eu vendia há quatro anos nem se compara com o volume de dois anos para cá. Muitas lojas por aqui foram fechadas”.
Daniel Soares, proprietário da Livraria Daniel, também constata um relativo aumento no consumo de obras literárias. “Tem sempre a galera que procura ‘Diário de Um Banana’, ‘Harry Potter’ ou romances água com açúcar, mas notei a procura por livros sobre investimentos”, afirma Soares.
O interesse dos leitores, porém, pode ser diversificado e escapar do padrão mais corrente na descrição dos lojistas.
Na tarde do dia 16 de julho, a psicóloga Cândida Rezende e seu marido, o sargento do Exército Walter Lucena, ambos de 37 anos, circulavam pelos corredores da Maciel com os filhos Henrique, 13, e Cauã, 11. A família, que reside em Corumbá, cidade que não possui nenhuma livraria, estava em busca de novidades. Mas somente Walter teve sorte. Bateu o olho em “Hermosas Criaturas” (que em português se chama Dezesseis Luas), romance de fantasia escrito por Kami Garcia e Margaret Stohl, e não pensou duas vezes. “Vou levar, preciso praticar o meu espanhol”.
Não é somente entre os clientes que o interesse pelo livro aparece como uma tradição de família em Campo Grande. Do outro lado do balcão, os livreiros da velha guarda – como o pioneiro José Cícero de Pino, fundador da Hamurabi, nos anos 1970, e Itamar Maciel de Rezende, que em 1985 criou a Maciel Livros – estão na origem de histórias que dariam um livro e tanto.
Com obstinação, paciência e muito apreço aos tomos, eles fizeram da leitura, além de hábito prazeroso e saudável, um negócio que foi passando de pai para filho.
No caso do Maciel, a trajetória tem a curiosidade de se estender, digamos, de modo horizontal, antes de chegar aos herdeiros do patriarca – Samuel Duarte, 25 anos, e Gabriel, 22. Ambos são peça-chave na loja da família.
Mas muito antes de terem nascido, no comecinho da livraria, seu Itamar contratou como vendedora Angelita Rocha, irmã de Cleide Maria de Souza Duarte e futura tia dos jovens livreiros. Um dia, Angelita apresentou Cleide ao patrão. E o restante dá para imaginar. Hoje, além dos quatro, a mãe delas, Dona Elena, também cumpre expediente no sebo.
“Ele começou a vida como engraxate, na infância, e, antes das loja, teve banca de jornal bem aqui em frente, na Praça [Ary Coelho]”, orgulha-se dona Cleide, que está com 49 anos de idade e há 26 atua como uma profissional do livro. Sem preconceitos, ela fala da vasta coleção em posse da família com uma ternura que chama atenção.
Seja sobre a saga pop infantojuvenil “Diário de Um Banana” – “um livro fantástico” – sejam nomes consagrados da literatura universal, a exemplo de Fiódor Dostoiévski (1821-1881), criador de “Crime e Castigo” (1866), “O Idiota” (1869) e “Os Irmãos Karamazov” (1881); e Eça de Queiroz (1845-1900), autor de “O Crime do Padre Amaro” (1875), “O Primo Basílio” (1878) e “Os Maias” (1888).
Aliás, anote a pechincha. As obras completas do russo, em edição de 1967, com dez volumes que passaram por um delicado trabalho de restauro e encadernação, saem por R$ 800 reais. Já a coleção com todos os trabalhos do português, em 12 volumes de 1948, com capas originais, custam R$ 1.300. O prazer de ler e o poder de envolvimento desses romances clássicos, acredite, não têm preço. (MP)