Seres humanos que, por encanto, transformam-se em troncos de árvore são uma recorrência na poesia de todos os tempos e lugares. No Brasil, de Manoel de Barros (1916-2014) ao arcadismo, a metáfora ganha forma de acordo com a verve do autor.
Nas lavras da mitologia grega, que, aliás, é influência das maiores para os poetas árcades, encontramos a ninfa Dafne (1916-2014) vertida em uma árvore de louros, por obra do seu pai, o deus Peneu, com o objetivo de livrá-la da paixão voraz de outra divindade, Apolo.
Em Campo Grande, a cena poética tornou-se uma imagem real e bem concreta durante a semana passada.
Mas, dessa vez, foi uma árvore, ou o que restou dela, que se tornou uma figura humanizada com os traços de um personagem bastante conhecido dos admiradores da escultora Conceição Freitas da Silva (1914-1984), a Conceição dos Bugres.
Seu neto, o artista Mariano Antunes Cabral Silva, conhecido como Mariano Neto, inspirou-se na matriarca e decidiu confeccionar, à luz do dia, um bugrinho a partir do toco de uma árvore decepada que se localiza na Rua 15 de Novembro, bem próximo da esquina com a Avenida Calógeras.
CENA ABERTA
Quem passou pelo local ou trabalha por ali perto encantou-se ao ver uma produção artística tão singular ganhar vida em cena aberta em um dos cruzamentos mais movimentados da Capital.
“Eu estou aqui em Campo Grande há um bom tempo, esta banca existe há sete meses e nunca tinha visto um artista esculpir ao vivo, e não conhecia os bugrinhos nem Mariano Neto”, diz Amanda de Paula.
Ela trabalha na banca de capinhas de celular vizinha à obra e revela ter se tornado não somente fã do artista quanto, por tabela, uma “curiosa” para conhecer o trabalho da avó do escultor.
“O fato de este bugrinho ficar aqui agora pode fazer com que esta esquina vire um ponto turístico, vai chamar bastante atenção das pessoas, porque aqui é um ponto de muita circulação”, diz Amanda.
A MATRIARCA
Nascida em Povinho de Santiago (RS), Conceição dos Bugres faleceu no início dos anos 1980 e ficou famosa pelas esculturas de madeira de pequeno porte que produzia sob a inspiração de povos indígenas – cadiuéus, caiuás, terenas – e seu exemplo de resistência.
A história por trás da criação dos totens de imagem forte, que ficaram conhecidos como bugrinhas ou bugrinhos, diz muito da relação da artista com a natureza.
A crítica Maria da Glória Sá Rosa (1928-2016) conta, em um breve ensaio, que, para produzir a primeira peça, a escultora, ícone maior dessa expressão em Mato Grosso do Sul, buscou aproveitar as formas naturais de um pedaço de raiz de mandioca, desbastou com o cinzel e fez uma aplicação de piche para figurar os cabelos e a expressão facial.
Um artesanato primitivista, originado da labuta autodidata em sua morada simples no Bairro Universitário, que fascinou o mundo desde que foi vista em uma exposição pela primeira vez, o Panorama de Artes Plásticas de Campo Grande, em 1970.
Entre diversas outras mostras, seus trabalhos estiveram na Bienal Nacional de 1974, em São Paulo, e retornaram à capital paulista em grande estilo no ano passado, em uma mostra individual sob a curadoria de Fernando Oliva.
DESDE PEQUENO
Mariano aprendeu a fazer os bugrinhos desde os oito anos. Hoje, aos 56 anos, é o único continuador da arte de Conceição dos Bugres, que já teve como seguidores o artista Ilton Silva (1944-2018) e Abílio Freitas da Silva, respectivamente, filho e marido da escultora.
Reconhecido no meio artístico, Ilton era tio de Mariano. “É a primeira vez que estou esculpindo um bugrinho ao vivo com as pessoas olhando. Aqui, não vou poder encerar, por causa do sol, vou apenas pintar”, diz o guardião do legado dos marcantes totens de madeira.
“Minha avó me falava: ‘Mariano, eu já estou já de idade, você vai me olhando trabalhar, a hora que eu me for você vai ter de continuar isso daí’”, conta Mariano. “Eu ia sempre na casa da minha avó para aprender. Passava lá e acabava pousando por lá. Hoje, tenho os bugrinhos na Casa do Artesão. Os preços variam de 50 a 300 reais, dependendo do tamanho. Também aceito encomendas e muitos dos bugrinhos que fiz estão espalhados pelo mundo”, afirma o artista.
EM FAMÍLIA
A ideia de esculpir a obra em praça, ou melhor, em esquina pública surgiu a partir de um passeio que ele fez com sua mãe, a também artista Sotera Sanches da Silva, ex-nora de Conceição, que, ao circular pelo centro da cidade, observou a árvore decepada e visualizou que o toco renderia “um excelente bugrinho” para a família e toda a população.
“Semana passada, nós viemos aqui e na mesma hora pensamos em fazer um bugrinho neste toco. Aí Douglas foi atrás para viabilizar para a gente fazer. Muita gente não conhece os bugrinhos, e o nosso objetivo é as pessoas conhecerem”, conta Sotera.
Douglas é Douglas Alves da Silva, coordenador do Arquivo Público Estadual, foi ele o responsável por manter contato com as secretarias municipais de Cultura e Turismo (Sectur) e de Meio Ambiente e Desenvolvimento Urbano (Semadur), as duas pastas que liberam esse tipo de intervenção em espaços públicos de Campo Grande.
ALEGRIA E OPORTUNIDADE
Ao receber o sinal verde, Mariano vibrou. “Nem consegui dormir direito, louco para chegar logo a hora de fazer o bugrinho, quando fiquei sabendo que a prefeitura autorizou”, relembra o artista.
“Aqui está perto da Casa do Artesão, onde podem ser adquiridos os bugrinhos, então o próprio turista que passar por aqui vai poder conhecer mais do trabalho do artista, porque aqui é próximo do Mercadão, um local de passeio de turistas”, afirma Douglas.
Katienka Klain, gerente de Desenvolvimento de Atividades Artesanais da Fundação de Cultura de Mato Grosso do Sul (FCMS), afirma ser importante esta ação porque dá acesso à população à arte do bugrinho.
“Este bugrinho na esquina vai dar acesso à arte popular dos bugrinhos para as pessoas. A gente pensa também no viés econômico. A pessoa que quiser saber mais vai poder saber onde encontrar os bugrinhos para adquirir. Esta ação torna a arte mais acessível às pessoas”, comenta Klain.
Melhor assim. Só que, retomando as lições da mitologia e da arte poética, não custa destacar: quem sai cortando árvore adoidado pode ter o mesmo fim de Erisictão, rei da Tessália, que, ao derrubar um carvalho no bosque de Deméter, deusa da agricultura, recebe como punição um apetite insaciável que o faz devorar a si próprio.