Enquanto o sol se põe sobre as ruas de Jardim e Aquidauana, uma revolução silenciosa toma forma nos centros culturais dessas cidades históricas de Mato Grosso do Sul. Hoje e nesta sexta-feira, o projeto Música Erudita nas Escolas e Universidades levará aos palcos do interior do Estado uma experiência sonora que atravessa séculos, desafiando preconceitos e construindo novas pontes entre a tradição clássica e o público contemporâneo.
De acordo com o violonista Evandro Dotto, idealizador do projeto, a iniciativa, que conta com o apoio da Lei Paulo Gustavo e é organizada pela Fundação de Cultura de MS, surge como resposta a um paradoxo cultural: como a música erudita, que durante séculos foi a linguagem musical dominante no Ocidente, transformou-se em um patrimônio distante, quase inacessível para grande parte da população? É essa lacuna que o trio Opus Vivare – formado por Evandro, a soprano Bianca Danzi e o violinista Gabriel Almeida – pretende preencher com seus concertos didáticos.
O violonista Evandro Dotto conhece bem os dois lados dessa história. Criado em projetos sociais onde o acesso à música erudita era limitado, ele hoje se dedica a inverter essa equação.
“A música erudita, muitas vezes, fica restrita a teatros de grandes capitais, como se fosse um tesouro trancado. Nossa missão é tirá-la dessas salas e devolvê-la às pessoas”, explica o músico, cujas apresentações misturam peças de Bach com composições regionais sul-mato-grossenses.
A soprano Bianca Danzi destaca o caráter transformador dessas apresentações em locais não convencionais. “Cantar ‘Mi chiamano Mimì’ [de La Bohème] em um pátio de escola, com crianças que nunca ouviram ópera, é mágico. Elas acham que é ‘música de filme’ – e aí contamos que, na verdade, os filmes é que usam nossa música”, relata a cantora.
“Não queremos ‘ensinar’, mas sim provocar a curiosidade. Quando uma criança pergunta: ‘Como o violino faz aquele som?’, ela já começou sua jornada”, afirma Bianca, que já testemunhou o impacto dessas apresentações em comunidades carentes.
O repertório cuidadosamente elaborado pelo trio funciona como uma máquina do tempo musical. Na primeira parte, obras de Bach e Vivaldi transportam o público ao rigor matemático do barroco. Em seguida, o romantismo de Puccini e Verdi revela a explosão emocional do século 19. O ápice vem com composições contemporâneas e regionais, demonstrando que a música erudita não ficou congelada no passado, mas continua evoluindo e dialogando com outras linguagens artísticas.
Esse diálogo entre o global e o local é particularmente marcante nas peças que retratam a história de Mato Grosso do Sul. “Quando toco uma peça que retrata a construção da Avenida Afonso Pena em Campo Grande no século 20, vejo os olhos do público se iluminarem. É música erudita viva, feita por compositores da nossa terra”, observa Evandro Dotto.
Os concertos em Aquidauana representam mais do que simples apresentações musicais. São atos de resistência cultural em um momento em que o acesso à arte qualificada se torna cada vez mais desigual.
O impacto social do projeto vai além do momento do concerto. Escolas que recebem as apresentações relatam aumento no interesse por aulas de música e formação de grupos instrumentais. “Já vi crianças pegarem violões de papelão depois das apresentações, imitando nossos gestos. Quem sabe não estão plantando ali um futuro músico?”, conta Evandro Dotto.
Enquanto se prepara para mais uma temporada de concertos, o Opus Vivare mantém viva uma tradição que remonta aos antigos menestréis: a de levar a música diretamente ao povo, sem mediações elitistas.
SERVIÇO
Concerto em Aquidauana,
Hoje, às 19h30min, no Centro Cultural da UFMS.
Concerto em Jardim,
Nesta sexta-feira, às 19h30min, na Rua Ceará,
nº 351, Vila Angélica.
Entrada gratuita.