Da mitologia para o teatro grego e deste para o imaginário universal. Não à toa, a “Medeia” de Eurípedes, que data do ano 431 da era pré-cristã, tem devidamente o status de clássico e, como “Hamlet”, de Shakespeare, e outros textos antológicos, funciona até hoje como tirocínio para atrizes – e encenadores – em todo o mundo.
Basta uma olhadela no Google para saber de montagens recentes que revisitam a obra de Eurípedes. Ficando somente no Brasil, nos últimos meses, estrearam ou reestrearam versões de “Medeia”, algumas ainda em cartaz, em pelo menos três cidades de diferentes estados: “Era Medeia”, com Isabelle Nassar e Eduardo Hoffmann, no Rio de Janeiro; “Medeia Vozes”, do Grupo Ói Nóis Aqui Traveiz, em Porto Alegre (RS); e “Medeia, Amor e Vingança”, em Sorocaba (SP).
Do palco para a tela, a série “Medea”, produção do brasileiro Canal Demais, gravada em uma cozinha, em Londres, na Inglaterra, com um iPhone, e disponível no Prime Video, vem colecionando uma série de prêmios mundo afora, com Mariana Lewis no papel principal.
Para muito além da loucura e da maldição que acometem a personagem no texto original, “Medeia” é caixa de ressonância das mais fortes para se pensar sobre a condição da mulher e do feminino, infelizmente, em qualquer tempo.
CONTRA O PATRIARCADO
O patriarcado nunca deixou de jogar pesado ao atribuir docilidade, maternidade e comportamentos retraídos para tachar as mulheres e impor condições para a sua plena – aliás, plena para quem mesmo? – aceitação na sociedade.
Por isso, Medeia, que, na hipérbole do enredo da tragédia grega, vinga-se do marido e põe fim à vida dos próprios filhos, vem sendo sucessivamente interpretada como uma personagem que é sinônimo de busca de liberdade e autonomia, ambição de novos ares para superar as relações de poder.
É nessa vaga, com os pés e as mentes fincados no contemporâneo, que a Cia Ofit, de Campo Grande, propõe a sua versão do mito e do clássico texto teatral com “Groselha”, sua nova montagem. Afinal, como subscreve a companhia em seu material de divulgação, assédio, machismo, violência, padrões sociais, maternidade e luta por igualdade de direitos são elementos que permeiam a vivência de qualquer mulher na sociedade, não importa a sua cor, origem, religião ou ideologia.
Com direção de Nill Amaral e Karine Araújo em cena, o espetáculo cumpre temporada de estreia de amanhã até sexta-feira, no Sesc Cultura, sempre às 19h. A entrada é gratuita, e os ingressos podem ser retirados no Sympla.
Adaptação livre de Eurípedes, a peça é um desdobramento do solo apresentado, em setembro deste ano, no projeto Cena Aberta – Encontros Paralelos. Nill, Gil Esper e Karine, com a colaboração de Éder Rodrigues, assinam a dramaturgia.
Para Karine Araújo, o monólogo convida o público a repensar temas que são corriqueiros nos noticiários e nas redes sociais, mas, que por diversas vezes, acabam “normalizados” e entorpecidos no subconsciente da sociedade.
“O espetáculo oscila entre a força bruta das marés e a suave intimidade que é entrar no universo feminino, como quando alguém compartilha uma receita de café”, afirma o diretor Nill Amaral.
“Não é incomum vermos histórias de mulheres que precisam ir contra tudo e todos para serem ouvidas, e muitas vezes elas são invisibilizadas ou marginalizadas. É muito importante colocarmos os holofotes em questões desse tipo e promovermos discussões sobre a responsabilidade do homem nesses casos e sobre como desconstruir padrões para criar um ambiente social mais saudável para todos”, repassa Karine.
ESTUDO PERFORMATIVO
“Groselha” é um estudo performativo sobre a condição da mulher e a fluidez de suas identidades em uma sociedade que a reverencia e a restringe simultaneamente, pontua o diretor Nill Amaral.
“A peça propõe, poeticamente, um exame das contradições inerentes ao papel tradicionalmente atribuído às mulheres e uma celebração de suas capacidades transformativas. É um espetáculo de teatro que desafia convenções narrativas ao substituir a linearidade por uma estrutura fragmentada que reflete a multiplicidade da experiência feminina”, afirma.
Não por acaso, a única personagem em cena dá voz e cadência à dramaturgia tendo o mito “Medeia” apenas como ponto de partida. São nos percalços dos problemas da atualidade que a história de “Groselha” se revela. Nill e Karine apostam que a peça deve surpreender até mesmo o público que assistiu à primeira versão do trabalho.
“Aos que já assistiram, o espetáculo foi expandido e acrescentamos novas camadas à personagem. Aos que ainda não viram, é a adaptação de um clássico, mas com o respiro do contemporâneo. Todos estão mais do que convidados a mergulhar conosco nesta força do ‘ser mulher’”, declara a atriz.
APOIO E EQUIPE
A montagem de “Groselha” tem o apoio da Fecomércio MS, por meio do Sesc Cultura. “Parcerias são imprescindíveis para a realização deste trabalho. Pensando que estamos no fim do ano, às vésperas das tradicionais festas, montar um trabalho como esse, sem edital, é sempre um desafio”, diz Nill Amaral.
“Contudo, também significa manter a equipe em constante movimento e dar continuidade à trajetória da cia. Afinal, por trás de todo trabalho da Ofit existe um longo processo de pesquisa textual, figurino, iluminação, elenco”, completa.
Na equipe do espetáculo estão ainda: Gil Esper e Rodrigo Bento (iluminação), Carlos Anunciato (preparação de corpo) e Thays Nogueira (produção).