Solução defendida pelo Ministério da Fazenda para quitar créditos tributários que hoje dilapidam a arrecadação federal pode resultar na ampliação de despesas fora do limite do arcabouço fiscal e da meta de resultado primário.
O governo criou uma trava para evitar abatimentos significativos nos tributos recolhidos pelas empresas e quer encorajar as companhias a optar pelo pagamento dos valores via precatórios, como são chamadas as dívidas judiciais honradas por meio de repasses diretos do poder público a seus credores.
A estratégia chamou a atenção de analistas, dada a conveniência para a equipe econômica. No fim do ano passado, o STF (Supremo Tribunal Federal) autorizou o pagamento de parte dos precatórios fora dos limites do novo arcabouço fiscal até 2026, último ano de mandato de Lula. Os gastos também ficarão fora das metas de resultado primário, obtidas pela diferença entre receitas e despesas.
"As restrições que foram colocadas acabam incentivando as empresas, principalmente as que têm os maiores créditos, a buscar a saída dos precatórios para terem recursos em caixa. E o governo consegue fugir das restrições das regras fiscais. Então, a mudança ajuda o governo dos dois lados: aumenta a arrecadação e não entra na conta da meta", observa o economista Tiago Sbardelotto, da XP Investimentos.
A MP (medida provisória) sobre o tema, publicada pelo governo em dezembro, prevê o parcelamento dos créditos tributários decorrentes de decisão judicial transitada em julgado caso o valor supere os R$ 10 milhões.
O desconto poderá ser feito em até 60 meses, a depender do montante envolvido. Com a trava, o intuito é induzir empresas a optarem por receber o valor em precatório.
Interlocutores da Fazenda afirmam, sob reserva, que a trava às compensações não foi apresentada com a intenção de escapar de quaisquer regras fiscais.
O objetivo central da medida, na visão da pasta, é evitar a via rápida usada pelas empresas para abater os valores de imposto a pagar, o que prejudica o planejamento da União.
Para o governo, a possibilidade de o pagamento dos créditos tributários via precatórios ficar fora das regras fiscais é uma consequência da decisão do STF, e o Executivo não fará "nada de errado" em usar o expediente para continuar mantendo essas dívidas em dia.
A fonte lembra ainda que, caso o total de precatórios fique abaixo do que seria o subteto para essas despesas, não haverá qualquer excedente ou desvio.
Hoje, empresas que saem vitoriosas na Justiça contra a União em disputas tributárias podem se ressarcir dos valores por meio do uso de créditos para abater impostos a pagar, no momento que lhes for mais oportuno.
Com o julgamento bilionário da "tese do século", que tirou o ICMS (imposto estadual) da base de cálculo de PIS e Cofins (tributos federais), as chamadas compensações deram um salto e abriram uma sangria nas receitas da União.
Dados da Fazenda mostram que o valor total abatido pelos contribuintes saltou de R$ 71,1 bilhões em 2018 para R$ 225,6 bilhões em 2023 (até novembro), em cifras nominais. No mesmo período, apenas os créditos judiciais saíram de R$ 4,1 bilhões para R$ 77,4 bilhões.
Em reação, o governo de Luiz Inácio Lula da Silva (PT) editou uma MP (medida provisória) que cria uma trava para o uso das compensações a partir de decisões judiciais.
Além de estancar as perdas na arrecadação, a Fazenda entende que o precatório é o meio mais apropriado para quitar esse passivo, pois possui um rito definido de pagamento que permite ao governo se planejar em termos fiscais.
O que chamou a atenção dos analistas é que o governo tem, ao menos neste mandato, uma situação confortável para deslocar os passivos tributários para a conta de precatórios, uma vez que o pagamento poderá ser feito sem risco de pressionar outras áreas ou esbarrar em regras fiscais.
O STF declarou a inconstitucionalidade do teto para o pagamento de precatórios, criado em 2021 sob a gestão de Jair Bolsonaro (PL), autorizou a regularização dos valores represados e também permitiu a abertura de crédito extraordinário no futuro para bancar os montantes que seriam acumulados em 2025 e 2026, últimos anos de vigência do subteto para dívidas judiciais.
Os valores excedentes ao subteto de dívidas judiciais, caso ele ainda tivesse validade, poderão ser pagos fora dos limites do arcabouço e não afetarão o cumprimento das metas fiscais.
Críticos da medida também traçam um paralelo entre a trava às compensações e o próprio teto dos precatórios contestado pela atual gestão e que ganhou o apelido de PEC (proposta de emenda à Constituição) do Calote.
O efeito prático da proposta do atual governo seria semelhante ao teto das dívidas judiciais, agora invalidado pelo STF, pois adia o acesso do credor a um direito tido como certo.
"Há quem compare, com razão, ao 'calote' nos precatórios. É provável que haja um alto nível de judicialização", avalia Sbardelotto. Tributaristas ouvidos pela Folha também classificaram a medida como confisco ou calote.
O secretário-executivo do Ministério da Fazenda, Dario Durigan, rejeitou o selo de "calote" nos créditos tributários. Em entrevista a jornalistas no dia 4 de janeiro, ele disse que a medida não impede a empresa de receber os valores devidos, apenas evita que a compensação de uma só vez frustre o planejamento fiscal do governo.
Segundo o número dois de Haddad, as novas regras buscam criar uma sistemática que dê mais previsibilidade para as contas públicas.
"O que esses cinco anos nos mostraram é que a lógica da compensação subverte a lógica do precatório. A lógica do precatório existe na Constituição para dar previsibilidade para o poder público. Eu recebo as informações da Justiça, compilo, prevejo no Orçamento, o Congresso aprova e eu pago. As compensações judiciais fugiram a esse controle", afirmou.
O secretário destacou que o valor total das compensações, não só as judiciais, cresceu tanto nos últimos anos que superou a fatura dos precatórios.
Entre janeiro e novembro, os abatimentos realizados pelos contribuintes somou R$ 225,6 bilhões --mais que o dobro dos R$ 93,1 bilhões em precatórios represados desde 2022 e que foram regularizados no fim do ano passado.
"O que você precisa criar é um equilíbrio entre as duas coisas. Na compensação, os dados mostram que ela vai virar a via prioritária, o que atrapalha o planejamento do Estado. E não tem nada a ver com calote", acrescentou Durigan.
Nas estimativas divulgadas pelo governo na ocasião do anúncio, limitar as compensações poderia elevar a arrecadação federal em cerca de R$ 20 bilhões já neste ano.
O incremento, se efetivado, será bem-vindo, uma vez que o ministro Fernando Haddad está sob pressão para flexibilizar a meta deste ano para evitar a necessidade de contingenciar recursos do Orçamento --o que poderia comprometer o andamento de investimentos públicos, que são uma das vitrines do governo Lula.
Neste contexto, porém, a melhora no resultado primário propiciada pela conversão das compensações em precatórios não significará, sozinha, uma melhora na dívida pública. Isso porque o governo vai arrecadar mais, mas também pode ter de realizar uma despesa adicional fora das regras.
Entenda medida defendida pelo governo
Compensação tributária
É o instrumento legal usado pelo contribuinte para recuperar tributos que tenha pago a mais ou indevidamente, conforme decisão judicial.
Hoje, as empresas vitoriosas em disputas tributárias podem utilizar os créditos no momento que considerarem mais oportuno
Proposta do governo
O governo propõe limitar o volume que pode ser compensado mensalmente pelas empresas que obtiveram decisões favoráveis na Justiça envolvendo créditos tributários superiores a R$ 10 milhões.
Limitação
O governo propõe um escalonamento para o uso dos créditos, impedindo que as empresas façam a compensação tributária de forma imediata. Elas terão de seguir um prazo mínimo para realizar o abatimento, que vai de 12 a 60 meses.
Eventualmente, as companhias podem optar por períodos até maiores do que o exigido, caso julguem oportuno, mas o prazo mínimo será obrigatório.
Nos casos de R$ 10 milhões a R$ 99 milhões, os créditos tributários deverão ser compensados pelo contribuinte no prazo mínimo de 12 meses (um ano). Na faixa entre R$ 100 milhões a R$ 199,9 milhões, passa a valer o período mínimo de 20 meses.
O menor prazo sobe para 30 meses no caso de créditos de R$ 200 milhões a R$ 299,9 milhões e para 48 meses (quatro anos) para valores entre R$ 300 milhões e 399,9 milhões.
Já os créditos de R$ 400 milhões a R$ 499,9 milhões deverão ser compensados no prazo mínimo de 50 meses. Para valor igual ou superior a R$ 500 milhões, o tempo mínimo é 60 meses (cinco anos).
Uma empresa que tem R$ 1 bilhão em créditos, por exemplo, poderá fazer a compensação ao longo de cinco anos, no valor de R$ 200 milhões anuais.
Impacto estimado
Segundo o Ministério da Fazenda, as decisões superiores a R$ 10 milhões representaram R$ 35 bilhões em créditos tributários em 2023. A limitação poderá elevar a arrecadação em cerca de R$ 20 bilhões em 2024.