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Política Obra traz a diversidade da loucura Obra traz a diversidade da loucura 14 FEV 2010 • POR FERNANDA BRAMBILLA, AE • 04h44

Maria Clara usa de toda a sua razão para fugir da clínica psiquiátrica na qual foi lacrada à revelia. Já Eugênia jaz delirante na cama após o acidente de Abel. Antônia não se martiriza por sufocar o pai idoso com um travesseiro. Antônio Carlos trava uma batalha com ratos furiosos que tentam devorar seus miolos, enquanto Alaíde persegue borboletas até tornar-se, enfim, uma delas. São encontros com a loucura, em toda a sua diversidade, suas fúrias e disfarces, que a autora Cláudia Belfort revela no recém-lançado “Aqueronte - O rio dos infortúnios”. A obra reúne 13 contos independentes com angústias de pessoas com vários tipos de distúrbios mentais, dos doentes de amor aos de hospício, dos depressivos aos raivosos, loucos sociais ou suicidas, que desdenham do limite do corpo na contramão da Imigrantes. O título faz menção à mitologia grega, que apresenta o leito do Rio Aqueronte como palco da travessia das almas rumo ao inferno, ao submundo dos mortos. “Para não pirar, pirei na literatura”, resume com bom humor a editora-chefe do “Jornal da Tarde”, que, quando o pai adoeceu, dispôs-se a despejar a dor no papel e tornou-se autora das histórias, ilustradas uma a uma por Marcos Muller. Também a loucura, nas linhas de Cláudia, tem seu humor, sua delicadeza de percepção. “O sofrimento psíquico também pode ser suave”, diz a jornalista, que ainda escreve sobre distúrbios mentais no blog Sinapses (blogs.estadao. com.br/sinapses). Para surpresa e alívio do leitor, até o caminho da insanidade pode terminar em borboletas amarelas, como comprova a solitária e perturbada Alaíde. Perdida no mundo, numa busca exaustiva pela felicidade, ela se rende a não ser ninguém, a perder- se em sua mente confusa, a tornar-se borboleta. “Deixo para o leitor muitas das conclusões dos contos. Será que essa mulher, Alaíde, é real? É uma criação da imaginação de alguém? O que realmente aconteceu com ela? Fica a cargo do leitor decidir no que prefere acreditar”, diz a autora. A loucura clínica pode até parecer tema de ambiente hospitalar, mas a identificação do leitor pode vir rapidamente. O que dizer dos loucos comuns, que não mais se indignam, mas se apavoram com a miséria de uma criança de rua que se aproxima demais? Ceder a um apelo por afeto pode não ser visto como benevolência, mas como loucura dos dias de hoje. As intempestivas relações humanas são em si uma fonte de loucura. Afinal, não há moralidade na loucura nem limites para o amor, como sugere o conto “A Teia”. Para não perder o amor de sua vida, a personagem principal o amarra bem em uma teia de desejo e paixão e vai soltando-o devagar, cuidadosamente, alimentando-o com sonhos, sedução e noites de luxúria. Mas não o deixa escapar. A rejeição, bem lembra Cláudia Belfort, também pode levar um são à loucura, e remeter o novo insano a um inverno escuro envolto por uma intransponível camada de culpa, que corroerá o que restar de razão. É também angustiante para o leitor torcer por um final feliz impossível, para mentes tomadas pela insanidade. Em “Os Ratos”, animais de apetite insaciável devoram pontas de dedos e orelhas, numa toada de guinchos e chiados. “Esse conto veio especialmente de uma inspiração real. Um amigo que chegou em casa dizendo que os ratos haviam comido as pontas de seus pés. Mas eles estavam intactos”, lembra Cláudia. Sua inspiração para a loucura ficcional, aliás, veio da fértil realidade. “Uma mulher que decide entrar na contramão da estrada para cometer suicídio é um fato recorrente”, lembra a autora. Ao menos em seu livro, porém, até os perdidos encontram alento na companhia de um anjo Gabriel.