Logo Correio do Estado

Crônica Recordando XXIX Recordando XXIX 2 MAR 2010 • POR • 05h52

Lembro-me que, por volta dos anos 40, havia uma personagem popular, muito con hecida por todos, principa lmente pelas crianças, era a Maria Bolacha, uma figura deprimente de gente, caricata, meio gorda, muito desajeitada e, além de tudo, louca, fazendo um conjunto deplorável da criatura humana. Naquele tempo não havia ainda a grandeza do respeito à pessoa humana, fosse quem fosse, ela simplesmente era jogada às “feras”, na verdade; já as crianças que divertiam- se com a figura deplorável que, aos seus infantis olhos, servia apenas para a diversão, que a pobre louca espicaçava com caretas e gritos ameaçadores. Não existia então, ninguém do poder público que assistisse materialmente a coitada. Era literalmente desprezada, sendo ela relegada a se virar como pudesse e tinha muito pouco com que se virar... Mas Maria Bolacha era sim, um ser humano, embora não fosse tratada como tal. Morava lá pros lados do Cascudo, vivendo de favor num quartinho tão pobre como ela, que lhe dera uma antiga patroa e subsistindo sabe Deus como. Era triste ver como a sociedade fingia não ver a desgraça que se abatera sobre a pobre coitada e o poder público dizer amém como se ele nada tivesse a fazer. Deram-lhe um nome quase divino – Maria – acrescido do ridículo como a marcar-lhe com ferro e fogo a sua qualidade de desprezível ser humano. Afinal, que respeito poderia esperar alguém a quem se chamava de Bolacha? E ela, coitada, na sua demência abastecia o clamor da criançada com gritos e gestos por longos momentos. Passava horas desfilando sua desgraça sem que ninguém nem qualquer coisa movesse uma palha em seu favor. E onde estavam as autoridades, o prefeito, o juiz, o delegado ou o padre pároco da matriz? Em seus respectivos gabinetes, ninguém tem nada a ver com isso, ela que carregue sua sina, como se alguém traçasse o próprio destino. Não sei nem nunca conheci alguém que soubesse como vivia, como comia, como dormia a pobre mulher, afinal não é mesmo da minha conta nem da conta de ninguém, simples assim. Não, não era tão simples assim não. Ela era, independente de seu comportamento ou de sua saúde mental, um ser humano. Às vezes quando a necessidade obrigava, se aproximava humilde de uma pessoa bem vestida e que lhe despertasse algum tipo de receptividade e súplice pedia com voz quase normal “me dê uma ajuda, pelo amor de Deus”. Quer dizer, a necessidade era tanta que até fazia voltar à pobre mulher um lampejo de normalidade. Geralmente recebia alguns trocados com que minorava sua desgraça. Só Deus sabe como Maria, a pobre Maria ia atravessando a vida, mas de tropeço em tropeço ela ia chegando ao fim de uma vida que ninguém desejava. Certo dia de domingo, à tarde, ela foi vista na Igreja São José, no último banco – quem era ela para sentar mais na frente? – olhando fixamente para a imagem da outra Maria como a inquirir “por que, minha mãe, por quê?” Até hoje ninguém sabe de que morreu Maria Bolacha. Acredito que morreu de cansaço, porque ser objeto de tanto desprezo, cansa. Lá de onde está deve estar pedindo, olhos nos olhos, para a outra Maria, que peça às crianças que não joguem tantas pedras nas Marias Bolacha da vida, porque elas existem e hoje são muitas.