Nem sempre um passeio turístico tradicional pode revelar todas as nuances históricas de uma cidade. Quando o jornalista campo-grandense Guilherme Soares Dias descobriu que São Paulo guardava fragmentos de narrativas negras por baixo do cinza costumeiro, decidiu se aventurar na criação de uma caminhada que contasse os relatos perdidos ao longo do tempo.
“Já faz um ano que criamos a Caminhada São Paulo Negra. A cidade tem muitas rotas turísticas, city tour, passeios pelo centro e outros marcos, mas não com o viés da negritude”, afirma Guilherme.
São 3,5 km de caminhada por bairros renomados da capital paulista, como o Centro Histórico e o Bixiga. O percurso começa no bairro da Liberdade, que, apesar de ser conhecido a partir da imigração japonesa, foi no passado uma terra de luta. “Nesse primeiro ponto, nós contamos a história de Francisco José Chagas, um soldado negro que foi condenado à forca em 1821, após lutar pelo direito do recebimento de salários. Naquela época, os condenados eram enforcados em atos públicos para dar o exemplo, mas quando foram executar a pena a corda dele arrebentou. As pessoas que estavam no local gritaram ‘liberdade’, pedindo a absolvição dele, mas não houve o perdão e ele foi enforcado pela segunda vez, quando a corda arrebentou novamente. O pedido das pessoas pela liberdade de Francisco deu o nome ao bairro”, explica Guilherme.
O soldado acabou morto após as tentativas e uma imagem dele permanece na Capela de Santa Cruz das Almas dos Enforcados, mais conhecida como Capela dos Aflitos, construída a partir de 1887 pela Irmandade de Santa Cruz dos Enforcados, uma associação que erguia não só igrejas, mas auxiliava negros a comprar a alforria quando a lei começou a permitir. “Essa igreja fica no bairro da Liberdade, mas não é muito conhecida pelos turistas e até alguns moradores de São Paulo. Mas há a imagem desse homem, onde os fiéis acendem vela e fazem o pedido em uma porta”.
Para Guilherme, parte dessa trajetória ainda está escondida em razão da relação dos relatos negros com a oralidade. “A história negra ainda é muito oral; é passada de geração para geração pela oralidade e nem sempre há um documento, uma menção ou placa que confirme o fato”, diz.
Mesmo com todos esses percalços, a história da Liberdade, por exemplo, está documentada, assim como as recentes mudanças que ocorreram no nome do metrô e da praça no local. Um projeto de lei aprovado em 2018 permitiu a inclusão da palavra “Japão”, em frente ao nome Liberdade, como uma homenagem ao povo imigrante que ocupou a região. “Nós fazemos essa provocação durante a caminhada. O bairro da Liberdade era periférico, nasceu no Largo da Forca, onde eram executadas as penas de morte, e só foi começar a receber os japoneses em 1900. Tanto que ainda há vários cortiços dessa época pelo bairro”, ressalta Guilherme.
Hoje, além dos negros e japoneses, a Liberdade ainda guarda outras etnias. Segundo o jornalista de Campo Grande, “a maioria dos restaurantes do bairro é de chineses; há também muitas lojas de coreanos”.
Rota
A Caminhada continua da Liberdade para a República por cerca de 3 horas. No percurso, ainda há a Igreja Nossa Senhora Rosário dos Pretos, a estátua da mãe preta e o antigo Pelourinho. “Visitamos a Praça do Pelourinho, onde ocorriam as torturas aos negros, e o Largo de 7 de setembro, que tem uma história importante para a civilização, mas não tem nenhuma referência no local, não tem placa. Nós também falamos sobre personagens importantes para a história negra, como o Luis Gama, um abolicionista que morou em São Paulo no século 19; a Maria de Jesus, uma das escritoras brasileiras mais traduzidas e que é negra; e o arquiteto Francisco Joaquim Oliveira Pinto, que fez várias fachadas de igrejas em São Paulo para comprar a sua alforria”, acrescenta.
Para Guilherme, um dos pontos altos da rota é a visita à estátua da Mãe Preta, que está em frente à Igreja Nossa Senhora do Rosário dos Homens Pretos, localizada no Largo do Paiçandu, na região central da cidade. O templo foi inicialmente construído por trabalhadores na Praça Antônio Prado, entre os anos de 1721 e 1722, mas, com a urbanização, precisou ser transferida para onde está atualmente. “Ela foi construída no Largo do Paiçandu pela Irmandade dos Homens Pretos em 1906, e essa estátua é a imagem de uma mulher negra amamentando uma criança branca. Seria uma ama de leite, no caso.
Claro que hoje essa não seria a melhor forma de homenagear uma mãe negra, e nós falamos sobre isso: sobre as contradições de São Paulo, os movimentos negros e, principalmente, o movimento feminista negro, que é muito forte aqui”, diz.
Expansão
Guilherme organiza as caminhadas ao lado de Luciana Paulino, que trabalha com relações públicas, e pelo fotógrafo e produtor cultural Heitor Salatiel. O custo do passeio é de R$ 50,00 e ele ocorre uma vez por mês.
“Eu vejo o potencial de criar essas caminhadas em várias cidades brasileiras. No Rio de Janeiro tem o Cais do Valongo que foi descoberto durante as obras das Olimpíadas, por exemplo. Em Curitiba, já tem uma iniciativa, que é a Linha Preta, e em Campo Grande, tem a comunidade Tia Eva e tantas outras histórias de pessoas que construíram a cidade”, ressalta.
Informações sobre o passeio no site www.blackbirdviagem.com.br/caminhada-sp-negra/ .