A família de Shayene Rodrigues, de 14 anos, ainda espera uma resposta. Da polícia, da Justiça, de alguém que possa dizer quem a matou. A adolescente, grávida de 7 meses, foi assassinada a tiros em Pernambuco, no dia 26 de agosto de 2017, um sábado. Levada ao hospital, não resistiu. Seu bebê também não. Dois anos depois, seu caso continua em aberto na polícia, sem um autor identificado, sem nenhum preso pelo crime. Sem qualquer perspectiva de solução.
O caso de Shayene não é isolado. Das 1.195 mortes violentas registradas de 21 a 27 de agosto de 2017, quase a metade segue em investigação na polícia. Só um em cada cinco casos teve uma prisão efetuada, e menos de 5% já têm um condenado pelo crime. É o que revela um novo levantamento exclusivo feito pelo G1.
O Código de Processo Penal determina que um inquérito policial seja concluído em 10 dias quando houver prisão em flagrante ou 30 dias em caso de inexistência de prisão cautelar. Os delegados, no entanto, podem pedir um prazo maior para elucidar o caso – o que normalmente acontece.
Mais de 230 jornalistas espalhados pelas redações do G1 no país acompanham esses casos há dois anos, quando uma megamobilização foi feita para contar as histórias de todas as vítimas de crimes violentos ocorridos durante uma semana no Brasil. O trabalho, inédito, marcou o início de uma parceria com o Núcleo de Estudos da Violência (NEV) da USP e o Fórum Brasileiro de Segurança Pública.
Em 2018, um ano depois, um balanço do andamento de todos esses casos foi publicado. E agora, dois anos depois, um novo esforço de reportagem foi feito. E os resultados não são nada animadores.
Os novos dados mostram que:
quase metade dos casos continua com a investigação em andamento na polícia (48% do total, ou 569). A outra metade (595) foi concluída ou arquivada, mas 105 sem solução — ou seja, sem a autoria do crime. Em 31 casos, o status não foi informado ou o inquérito não foi instaurado
considerando todos os 1.195 casos, a polícia ainda não identificou os autores de 501 deles (42%). O número de inquéritos com autores identificados aumentou desde o último balanço, há um ano, mas pouco — passou de 469 para 492, ou seja, somente 23 novos casos
apenas 22% dos casos (259) tiveram um ou mais suspeitos presos. Desde que os crimes aconteceram, 431 pessoas foram detidas, mas 129 delas já foram soltas
somente 292 casos (24%) têm autores processados na Justiça. Destes casos, apenas 68 foram a julgamento, e 57 resultaram na condenação de ao menos um réu
das 1.195 mortes, 99 foram classificadas como suicídio pela polícia. No balanço de um ano, eram 104, o que significa que a polícia reviu alguns casos e os reclassificou como homicídio
No caso de Shayene, a polícia chegou a divulgar que havia identificado os autores do crime. Mas voltou atrás.
Maria José de Fátima Santana, de 62 anos, avó de Shayene, diz que não teve mais nenhuma notícia sobre o caso. "Acho que deixaram para lá." Ela diz que já tinha perdido o filho, pai de Shayene, assassinado, há dez anos. "É uma dor que eu não quero para mãe nenhuma."
A polícia trabalha com a hipótese de acerto de contas. Também foi morto Carlos Vinícius de Oliveira Castro, de 21 anos, que tinha um relacionamento com Shayene e era considerado o alvo do crime.
Há vários outros casos como o de Shayene ocorridos naquela semana que aguardam um desfecho na polícia, como:
o de Kedson Rodrigues, vereador de Governador Nunes Freire (MA). O corpo dele foi encontrado em um matagal com golpes de faca. O crime continua sem solução
o de Cristina Martins Bispo, que foi estuprada e estrangulada em João Neiva (ES). Ela foi encontrada nua, com marcas de agressão sexual. O motivo e a autoria do crime ainda são desconhecidos
o de Nialber Alves Lima, morto após vários disparos em Caruaru (PE). Ele conversava com um amigo e com o irmão na frente de casa quando homens que fingiram ser policiais atiraram. Os criminosos nunca mais foram localizados
o de Silvio Luiz Fogaça, baleado ao abrir o portão de casa para entrar com o carro em Maringá (PR). Ele já havia escapado de um atentado cinco anos antes, quando um menino de 3 anos morreu em seu lugar. Nenhum suspeito foi identificado até agora
o de Gisele Rosana da Silva, assassinada após um tiroteio em uma praça na Zona Oeste do Rio de Janeiro (RJ). Ela assistia a um jogo de futebol de amigos quando foi atingida. Ninguém foi preso pelo crime
No 1° Encontro Nacional de Diretores de Departamentos de Homicídios, realizado na última semana no Rio, foi aprovada pelos delegados uma recomendação para que as investigações de homicídios no Brasil não ultrapassem o prazo de 24 meses (ou seja, dois anos).
Desafios nas investigações
Para delegados e promotores, a investigação de homicídios vem se tornando mais difícil e complexa com o avanço e a interiorização do crime organizado. Facções do tráfico e milícias têm usado seu poder de fogo e capacidade financeira para esconder provas, ameaçar testemunhas e cooptar agentes da lei, dizem.
Para lidar com essas dificuldades, segundo eles, é necessário maior investimento em perícia e inteligência para desarticular organizações e reunir provas que levem à condenação dos assassinos. Também é preciso aumentar o efetivo de policiais civis e peritos, além de melhorar a integração da polícia com o Ministério Público e a Justiça. O G1 ouviu 5 delegados e 4 promotores de 7 estados que elencam os seguintes desafios na investigação de homicídios no Brasil:
Expansão do crime organizado
Falta de pessoal na Polícia Civil
Falta de acompanhamento dos avanços tecnológicos
Falta de capacitação de peritos e de investimento em estrutura
Melhora no atendimento ao local do crime
Dificuldade para investigar confrontos policiais
Falta de integração entre os sistemas
Baixo investimento no programa de proteção à testemunha
Modernização do Código Penal e da legislação
Andamento dos casos
Um estudo da pesquisadora Ludmila Ribeiro, do Centro de Estudos de Criminalidade e Segurança Pública, referência na área, diz que se forem cumpridos os prazos previstos em todas as etapas (sem prorrogações), desde o crime até a condenação ou absolvição do acusado, um processo de homicídio deve ser finalizado em menos de um ano – tempo esse raramente cumprido, como mostra o levantamento do G1.
Edson Luz Knippel, criminalista e professor da Faculdade de Direito da Universidade Presbiteriana Mackenzie, afirma que o cumprimento dos prazos e a duração dos processos, no entanto, depende muito das características do crime. “Quanto mais complexo o crime, mais provas eu posso ter que produzir”, afirma, citando a produção de laudos periciais como exemplo.
Knippel afirma que as estruturas policial e judicial também influenciam bastante na celeridade dos casos. Ele cita três elementos específicos que podem acelerar as investigações e, consequentemente, os andamentos dos casos:
a existência de delegacias especializadas: “Em São Paulo, por exemplo, tem o Departamento Estadual de Homicídios e de Proteção à Pessoa (DHPP). O andamento no DHPP acaba sendo mais rápido que na delegacia de bairro porque a polícia é treinada para investigar homicídios. O incremento dessas delegacias de forma nacional é uma possibilidade de acelerar as investigações.”
a existência de varas do júri: “Muitas vezes, há comarcas que não têm sequer vara do júri. É vara única, então o juiz que cuida de vara de família, acidente de trabalho, criminal, cível e empresarial é o cara que cuida também do júri. Existe uma falta de especialização nas varas. Precisa ter uma estrutura melhor para cuidar [destes casos de homicídio].”
a produção de provas periciais: “Temos que tirar das costas da vítima e da família da vítima o ônus de produção de provas. Temos que pensar em outros tipos de provas, como as periciais. Incrementar a perícia no Brasil e dar mais estrutura para os institutos de perícia são uma forma de chegarmos a uma investigação mais forte.”
Taxa de esclarecimento
A taxa de esclarecimento de crimes (ou seja, o número de casos em que uma investigação levou um autor a ser denunciado na Justiça em relação ao total de crimes) é de 28% nos casos do Monitor da Violência – índice pouco superior ao registrado um ano atrás (25%). O cálculo da taxa não considera os casos de suicídio e os reclassificados para morte não violenta.
O doutor em sociologia Arthur Trindade, professor da Universidade de Brasília e integrante do Fórum Brasileiro de Segurança Pública, afirma que as autoridades de outros países, como Estados Unidos, Canadá e Japão, acompanham e contabilizam os números de homicídios esclarecidos – o que não acontece no Brasil.
Relatório do Escritório das Nações Unidas sobre Drogas e Crime (UNODC, na sigla em inglês) mostra que a taxa global de esclarecimento de homicídios, levando em conta dados de 72 países, é de 63%. Nos EUA, por exemplo, a taxa foi de 58% em 2017 (último ano disponível), segundo o “Murder Accountability Project” (Projeto de Responsabilização de Homicídios). Já no Canadá, em 2018, o índice foi de 67%, de acordo com o Canadian Centre for Justice Statistics (Centro Canadense de Estatísticas de Justiça).
Como o índice do Monitor da Violência leva em conta apenas uma semana, é difícil fazer uma comparação precisa. Mas os dados indicam que, no Brasil, essa taxa é bem menor que nesses países.
“A gente só melhora aquilo que a gente mede, conta. Um fato que reafirma o quanto a gente não liga para esse tema é que a gente não tem sequer o dado. Como a gente não tem dado, também não tem parâmetro para dizer o que precisa melhorar ou não precisa melhorar. Isso é um sinal claro de que o Brasil não dá a devida importância para a investigação de homicídios. Outros países [EUA, Canadá, Japão e outros] contam isso, mensuram isso e, a partir disso, tomam várias decisões”, diz.
O professor da UNB destaca ainda que os dados do Monitor da Violência apontam uma grande diferença entre os estados, quando analisados os percentuais de esclarecimento de crimes. O Rio de Janeiro e o Ceará, por exemplo, têm taxas de 9,9% e 14,8%, respectivamente. Já Tocantins e Piauí registram índices de 77,8% e 72,7%.
Para Trindade, isso mostra a necessidade de um índice nacional de esclarecimento de homicídios. Com isso, diz, será possível identificar os estados bem-sucedidos e aqueles com mau desempenho para intensificar o treinamento de policiais especializados em investigar homicídios e aumentar o investimento tecnológico.
No 1° Encontro Nacional de Diretores de Departamentos de Homicídios, foi aprovada uma recomendação para que o Brasil passe a padronizar a taxa de esclarecimento de crimes.