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Livros Catástrofes mudam comportamento Catástrofes mudam comportamento 24 JAN 2010 • POR JACIR ALFONSO ZANATTA • 06h27

Inundações, terremotos e desabamentos marcaram o início de 2010 e vão ficar na memória para sempre. O ano nem começou direito e muitas pessoas perderam a vida. As tragédias, assim como a peste, não escolhem raça, religião ou classe social. Foram estas questões que me levaram a escolher o livro “A peste”, de Albert Camus. A obra do ganhador do prêmio Nobel de Literatura de 1957 está entre as melhores do século XX. Uma reflexão profunda sobre o comportamento humano nos tempos de crise. Material com capacidade de mostrar que o ser humano nada mais é do que um animal com impulsos reprimidos e que nos períodos de crise, enquanto alguns buscam ajudar os semelhantes, outros se aproveitam e se tornam feras predatórias e irracionais. Lembre-se que, em meio às desgraças, a alegria será sempre uma queimadura que não se saboreia. O livro é marcado por uma reflexão sobre o sentido da vida. Camus busca mostrar como nos apegamos às coisas passageiras, que no fim nada valem, mas que servem para, muitas vezes, manter a aparência. Nos períodos mais turbulentos é possível perceber que a vida não passa de um piscar de olhos entre o nascimento e a morte. Mesmo assim, uma boa parte da população insiste em viver num mundo de ilusão. São apáticos a tudo e criam uma redoma de vidro para se sentirem protegidos dos perigos vindos de fora e acabam esquecendo que o homem é capaz de fazer o bem, mas também pode produzir o mal. É possível perceber, ainda, que as guerras, as pestes e as grandes catástrofes naturais servem apenas para mostrar o lado sombrio do ser humano. Com isso, as ajudas humanitárias contribuem apenas para que a desgraça não chegue à nossa casa. É uma forma de manter o mal longe dos portões da cidade ou nação da qual fazemos parte. Nas situações extremas é possível perceber que o homem é capaz de grandes ações, mas se não for capaz de um grande sentimento, nada vale a pena. Clássico “A peste” é um clássico da literatura universal capaz de mostrar que a história e a sociedade que vivemos diz respeito a todos nós. Que são nas pequenas ações que construímos ou destruímos o mundo à nossa volta. E, que a omissão é uma forma de aceitação, pois permite que as coisas aconteçam. Silenciar perante a injustiça e a corrupção é aceitá-la. O que em outras palavras é o mesmo que praticá-la. Intemporalidade é uma característica das obras de Albert Camus. Ele busca fazer uma abordagem filosófica em torno de questões relativas à natureza humana, presentes em qualquer época e lugar. “A peste” foi produzida numa linguagem clara e objetiva, por meio de personagens ricos e diálogos repletos de reflexões. Camus constrói sua trama à semelhança de um mosaico: à primeira vista, desenha-se uma situação definida, mas aos poucos é possível perceber o homem em sua plenitude, deixando vir à tona seus sentimentos e suas angústias. Camus vai um pouco além de meramente fazer um relato sobre a peste. No primeiro capítulo ele mostra que para se conhecer uma cidade em todos os seus meandros é preciso saber como se trabalha, se ama e se morre. Conforme vamos lendo a obra, é possível perceber que a grande maioria das pessoas dedica boa parte da vida para criar hábitos e outra para deixálos. É interessante observar, ainda, que quando as pessoas criam hábitos, os dias passam sem dificuldades. Hoje já se tornou natural ver as pessoas trabalharem de manhã à noite e optarem, em seguida, por perder o pouco tempo que lhes resta para viverem na frente da televisão. Mas o que impressiona em Camus, é como ele consegue ver com clareza e precisão aquilo que o ser humano mais tenta esconder. Ele alerta para o fato de que o trabalho mata o amor, uma vez que as pessoas casam-se, amam ainda um pouco, trabalham. Trabalham tanto que se esquecem de amar. Por isso, é importante saber que não é necessário ser feliz para recomeçar e que muitas vezes a felicidade não é mais do que uma ilusão. Para Camus, a obstinação é a única coisa que triunfa sobre tudo. Ele acredita que enquanto as pessoas são amadas, são compreendidas sem palavras. Mas lembra que uma pessoa não ama para s empr e. Por isso, ele defende que o grande desejo de um coração i nquieto é possuir interminavelmente o ser que ama e poder mergulhar esse ser, quando chega o tempo da ausência, num sono sem sonhos que só possa acabar no dia do reencontro. Assim sendo, nada no mundo vale que nos afastemos daquilo que amamos. Desta forma, ele acaba por sentenciar que as pessoas só se afastam do que amam quando mantém relacionamentos medíocres. Sobre tragédias, ele argumenta que elas podem tirar o poder do amor e da amizade. Aparências O livro é uma crítica à sociedade da aparência. Mesmo durante os períodos de maior desgraça, as pessoas buscam manter as aparências. Isso mostra que o ser humano coloca sempre em primeiro lugar as preocupações pessoais. Desta forma é possível afirmar que não existe fraternidade e nem respeito ao próximo em meio a desgraça. É preciso prestar atenção aos sinais dos tempos. Quando as pessoas não conseguem escutar os outros é porque não conseguem nem escutar a si próprias. E é apenas na desgraça que é possível se habituar à verdade contida no silêncio. Vemos assim, que os flagelos são comuns, mas é difícil acreditar neles quando se abatem sobre nós. Por isso, nunca alguém será livre enquanto houver flagelos. Para Camus o mal que existe no mundo provém quase sempre da ignorância e da boa vontade, que se não forem esclarecidas, podem causar tantos danos quanto a maldade. As pessoas são em sua essência egoístas e não conseguem pensar em ninguém, mesmo vivendo a pior das desgraças. Prisões O a u t o r acredita que por vivermos num mundo s e m a mo r, chega sempre uma hora em que nos cans a mo s d a s prisões, do trabalho e da coragem, para reclamar o rosto de um ser e o coração maravilhoso da ternura. Quem sabe seja por isso que Camus defende que a ternura humana é algo que se pode desejar sempre, mas se obtém apenas algumas vezes. Assim mesmo com toda a desgraça que ronda a humanidade, os homens possuem mais coisas a admirar que a desprezar.