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CINEMA

Wagner Moura lança filme sobre Marighella; guerrilheiro assassinado há exatamente 52 anos

Em entrevista, Wagner fala sobre sua estreia na direção, o trabalho em frente e atrás das câmeras e a vontade de conhecer Mato Grosso do Sul

4 NOV 2021 • POR Marcos Pierry • 10h00

Oito anos depois de iniciar o projeto, o ator Wagner Moura finalmente estreia, hoje, em mais de 200 salas de todo o País, o seu primeiro longa-metragem como diretor, “Marighella”. 

O filme narra o cerco que levou à morte o político e guerrilheiro Carlos Marighella (1911-1969), baiano como o diretor, que, por enquanto, ainda é mais conhecido por estrelar sucessos do cinema, como “Tropa de Elite” e “Deus É Brasileiro”, da TV aberta, como a novela “Celebridade”, e do streaming, como a série “Narcos”.  

De olho na carreira internacional, Moura se mudou para Los Angeles em 2018, mas anuncia projetos que podem trazê-lo de volta ao Brasil no próximo ano. 

Por enquanto, ele está por aqui para a temporada de lançamento de “Marighella” e, depois de dois anos, para férias brasileiras com a família. Mas se mantém alerta. 

Além da crítica, às vésperas da estreia, Marighella ganha destaque também por ter se tornado um emblema de resistência ao atual governo federal.  

O ataque ao assentamento na Bahia, onde haverá uma sessão especial no sábado, e o vazamento do filme na internet aguçam ainda mais a polêmica. Leia, a seguir, os principais trechos da entrevista que o diretor concedeu ao Correio do Estado na terça-feira, em meio ao corre-corre de sua agenda em São Paulo.  

Correio do Estado – por que decidiu fazer o filme ao ler a biografia de Carlos Marighella?

Wagner Moura – eu era marighellista antes de o Mário [Magalhães, autor de “Marighella: O Guerrilheiro que Incendiou o Mundo”] lançar o livro [em 2012]. O meu fascínio pelas histórias de resistência no Brasil e o ambiente universitário de esquerda e de DCE [Diretório Central dos Estudantes] me impregnavam. 

Marighella sempre foi um nome que permeou o meu imaginário como alguém que lutou por democracia e liberdade. E [a atriz] Maria Marighella, nossa contemporânea ali do lado na Escola de Teatro, era e é minha amiga. Eu convivia com a neta de Marighella. Quando Mário lançou o livro, foi a deixa para dar vazão ao nosso marighelismo. 

Só não achei que fosse dirigir um filme tão complicado. Certamente, se eu fosse parar para escrever um filme, teria escolhido um roteiro em que eu tivesse mais controle sobre os personagens, um valor de produção mais barato. Mas veio “Marighella”.

Lembro que, quando fez “Hamlet” no teatro, você se envolveu bastante com a etapa de adaptação e tradução do texto. Como foi essa etapa com “Marighella”?

A mais difícil de todas. Passamos muito tempo trabalhando o roteiro. “Marighella” é um filme que nasce da minha admiração pelos que resistiram na ditadura, mas a porta de entrada no filme são os personagens e as contradições dos personagens. Não fiz um filme cujos personagens são vetores para dizeres políticos. 

É um filme em que você se conecta com a luta de Marighella porque você se conecta com o drama dele, com quem ele é. Dar complexidade em personagens históricos, ter responsabilidade sobre o contexto real e, ao mesmo tempo, fazer com que aquilo funcione como cinema de ficção é muito difícil. 

Eu tinha sempre muito claro que eu não estava fazendo um documentário, mas ao mesmo tempo eu precisava ter responsabilidade, sobretudo com esse período, que é tão controverso na história do Brasil.

Para fazer um filme sobre resistência política você mergulhou em grandes referências do cinema que possuem alguma convergência, como o neorrealismo italiano?

Exatamente. O neorrealismo italiano é uma referência, o cinema que mais me diz, me norteia. Influenciou o cinema novo. Essa coisa do pós-guerra na Itália, de você fazer cinema em um campo destruído, em uma situação precária, distópica, de usar não atores, fazer cinema com pouco dinheiro. 

E, sobretudo, um cinema de esquerda, um cinema de esquerda que eu digo que quer olhar para as classes trabalhadoras. Eu acho que o cinema brasileiro bebeu muito disso, e influenciou também nós que fazemos cinema hoje no Brasil. 

Essa estética está no meu filme de forma muito clara. Engraçado você ter falado sobre neorrealismo porque ali está a base de tudo o que eu gosto no cinema que me levou até “Marighella”. 

Sobretudo o cinema novo, que é muito devedor do neorrealismo italiano. E eu vejo isso nos filmes políticos brasileiros, no “Tropa de Elite”, no “Cidade de Deus”. Talvez essa seja a matriz de uma corrente estética e ideológica da qual o meu filme é, de alguma maneira, devedor também.

Você se envolveu, especialmente, com algum dos departamentos criativos?

Como ator, sempre gostei muito de entender o que cada pessoa fazia no set. Como diretor, terminei aprendendo muito mais sobre figurino, arte, elétrica, maquinaria, fotografia, produção. Como é que tudo aquilo junto funciona no set. 

Mas uma coisa que eu sabia muito pouco e que me fascinou foi o som, o trabalho que eu fiz com o Alessandro Laroca na pós-produção do filme. O som é um departamento sempre visto como mais técnico e, na minha opinião, é um departamento artístico muito poderoso.

E quanto à escolha de Seu Jorge para viver o protagonista? A conhecida e esfuziante presença do cantor em cena não rouba algo na projeção do próprio personagem?

O que você está dizendo é que Seu Jorge tem muito carisma, ele tem, e isso é muito importante para o filme porque Marighella tinha muito carisma. Seu Jorge é movie star, mesmo, talentoso pacas. 

Uma presença em cena que você não consegue parar de olhar, isso é uma coisa importante para um protagonista. Ao assistir ao filme, você vê que rapidamente vai esquecer a persona e se conectar com o carisma de Seu Jorge, mas não com a figura pública. É aí que entra o meu trabalho como diretor.

Você foi se tornando persona non grata para o governo federal, por conta de seu posicionamento político-ideológico, e o filme sofreu boicotes da Ancine, além de anticampanha pública do presidente e seus familiares. Marighella já tem um vulto histórico cercado de polêmicas. Quem atrapalhou mais? O diretor ou o personagem retratado?

Os dois. É incrível como essa gente que hoje está no poder, que são saudosistas da ditadura, amantes de torturadores e de censores, tem medo de Marighella. 

Como o fantasma de Marighella apavora esses caras, hoje ainda mais do que, talvez, na época em que ele estava vivo. Todos esses ataques que aconteceram ao filme dizem muito mais sobre o estado das coisas no Brasil hoje do que o filme que eu fiz. 

Em qualquer país democrático, um filme está aí: você vai discute, debate, você não é obrigado a gostar de nada. Agora você ter o governo federal de um país tentando destruir um filme, isso tem muito mais a ver com o Brasil de hoje do que com Marighella e comigo.

Você tem dito que o filme mostra faces contraditórias de Marighella. Quais defeitos apontaria na figura mítica do guerrilheiro revolucionário?

Vários defeitos. Não me interesso pelo mítico. Me interesso pelo homem, e o homem que ele foi tinha vários defeitos. Não vou ficar aqui enumerando os defeitos nem as qualidades de Marighella. Não preciso defender Marighella. Ele não precisa de defesa. 

O que digo é que o meu filme mostra um Marighella contraditório, que toma tapa na cara e é colocado em cheque o tempo inteiro. Quem for assistir ao filme vai ver isso. Nem o personagem do Bruno Gagliasso [que faz o delegado Fleury, carrasco de Marighella] admiti que fosse monolítico.

E quanto aos novos projetos como ator, produtor, diretor?

A primeira coisa que já fiz e que vai estrear é um filme chamado “The Grey Man”, da Netflix, dirigido pelos irmãos [Joe e Anthony] Russo. Faço uma participação, um personagem pontual na história, mas muito legal. Fiquei muito feliz de ter feito. E logo depois, ou antes talvez, uma série da Apple TV Plus, que protagonizei com Elizabeth Moss, chamada “Shining Girls”. 

Fazemos dois jornalistas que investigam um serial killer feito pelo Jamie Bell. São duas coisas que vão sair ano que vem. E vou filmar no Brasil com o Cléber Mendonça Filho, no segundo semestre, para a Amazon. No primeiro semestre, tem um projeto fora do País, mas ainda não posso falar nada sobre ele. 

E estou produzindo uma série para a Disney sobre Maria Bonita, escrita e dirigida por Sérgio Machado. Tem vários projetos que não têm ainda uma data, como um projeto com o Karin Ainouz.

Como anda a sua rotina em Los Angeles?

A pandemia teve momentos deliciosos e profundos, porque passei com os meus filhos e a minha mulher. Mas foi difícil porque a gente estava preso em uma cidade que não era nossa, sem poder sair de casa, sem poder trabalhar. 

Fiquei um ano sem trabalhar como ator, não tinha projeto, ficaram todos mais para frente. Foi um ano em que eu dirigi “Narcos”. É massa morar lá, mas não é a minha cidade. Quando o avião pousa em L.A., eu não digo “ah, estou chegando em casa”.  

Sente vontade de dizer algo para o público de Mato Grosso do Sul?

Acho uma pena eu não conhecer essa parte do Brasil. Mato Grosso e Mato Grosso do Sul, além de Santa Catarina, talvez sejam os três estados do Brasil que eu não conheço ainda. Isso é uma questão para mim, mesmo, porque é uma parte do País rica em diversidade. 

O Brasil do futuro é o Brasil que aliará a cultura à biodiversidade ambiental única do Brasil. Você não pode falar disso sem falar nesta região. Tenho muita curiosidade de conhecer a relação fronteiriça com outros países na região, quais são as influências culturais. 

O bioma que vocês têm aí é único no Brasil, e eu não conheço. Isso me dá muita pena. Preciso conhecer, preciso ir aí.

Por que temos tanta dificuldade em aceitar o ponto de vista ou a condição dos povos indígenas?

É cultural. Fomos adestrados. Eu estudei na minha escola coisas sobre os índios. Não temos informação nenhuma sobre os povos indígenas. A nossa informação é estigmatizada, e toda a forma de controle social começa com a estigmatização. 

Você estigmatiza um povo para controlá-lo. Mesmo que nós sejamos progressistas, a nossa construção cultural do que é o povo indígena é ridícula. É difícil. 

Mas acredito profundamente que a geração dos nossos filhos e dos que venham em diante se conectarão e aprenderão com os índios que eles têm um saber de relação com o meio ambiente, sobretudo, e de outras coisas que podem transformar e levar o Brasil a esse lugar de país do futuro.

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