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entrevista "Vamos brigar pela autonomia financeira das mulheres" A ministra Cida Gonçalves disse em entrevista ao Correio do Estado que o combate à violência contra a mulher será uma das prioridades da gestão 7 JAN 2023 • POR mariana moreira, celso bejarano e daiany albuquerque • 09h30
Após ser anunciada como ministra, Aparecida Gonçalves relatou que os próximos quatro anos serão de recuperação dos direitos das mulheres de todo o País   Marcelo Victor

Em entrevista ao Correio do Estado, a ministra das Mulheres, Aparecida Gonçalves, relatou que a autonomia econômica das mulheres será uma das prioridades da Pasta. Cida aponta que outro grande desafio será combater os diferentes tipos de violência contra a mulher. 

“Durante os próximos quatro anos, não teremos tempo para resolver todos os problemas que estamos encontrando no País. Mas o que nós temos como meta e objetivo é fazer o possível para que as diferentes formas de violências que estão acontecendo em todos os âmbitos sejam reduzidas”, salientou a ministra. 
 
A senhora atua em Mato Grosso do Sul, um estado com histórico violento em relação às mulheres. Ser escolhida para o Ministério das Mulheres representa o que para a luta contra a violência contra a mulher?

O convite feito pelo presidente Lula para que eu assumisse o Ministério [das Mulheres] é uma vitória dos movimentos de mulheres, que têm me apoiado muito. 

Significa, também, que eu tenho uma grande responsabilidade pela frente, mas acredito que podemos avançar na garantia de direitos, pois agora temos um governo alinhado com as pautas de justiça social, de direitos humanos e, portanto, de políticas como equidade de gênero, igualdade salarial entre homens e mulheres e inclusão no mercado de trabalho.
 
A senhora terá pela frente diversos desafios para recompor a Pasta. Quais serão as prioridades para a sua gestão no Ministério das Mulheres? 

Na verdade, temos algumas prioridades para o Ministério que já foram desenhadas durante a campanha do presidente Lula. São 13 pontos de pautas e prioridades para as mulheres. 

Além disso, fiz parte também do grupo de transição de governo, em que já fizemos alguns diagnósticos de como o Ministério estava e o que estamos herdando. 

E nós já temos mais ou menos uma linha de três ações prioritárias. Uma é a questão da autonomia econômica e uma política de cuidados com a mulher. 

Porque a pandemia de Covid-19 escancarou o que é o trabalho da mulher de forma não remunerada, que engloba a rotina de ficar em casa e de todas as perspectivas que vieram a público com o home office. 

E isso nós precisamos trazer para o debate político, para encontrarmos uma solução que consiga remediar o estresse e cansaço dessa mulher. 

A segunda pauta é a questão da articulação institucional para fortalecer as secretarias estaduais de políticas para as mulheres, para que nós tenhamos uma política de capilaridade. E como resultado para o trabalho com as mulheres, teremos um ministério no âmbito federal, uma secretaria forte no Estado e uma no município.

Por outro lado, teremos como prioridade a participação das mulheres, em que precisamos fortalecer a bancada feminina no Congresso Nacional, na Assembleia Legislativa e nos municípios. É importante que, tanto no nível público quanto no privado, possamos colocar as mulheres nos espaços de poder. 

E, por fim, temos como trabalho prioritário o enfrentamento à violência contra a mulher, esse será o carro-chefe na nossa gestão.

Nós vamos retomar as Casas da Mulher Brasileira e o número 180 para denúncia, informação e orientação. Muitas pessoas permanecem na situação de violência por não saberem os respaldos a que têm direito. 

A mulher tem medo de denunciar, por exemplo, as agressões que sofre, com medo de perder a guarda dos filhos, o que não vai ocorrer.

Dentro dessas prioridades de cuidado com as mulheres, como o Ministério vai lidar com a questão da autonomia financeira da mulher?

Quando se discute a autonomia econômica, as mulheres fazem parte da maior parte do quadro de exclusão e desemprego.

É importante partirmos do pressuposto que a desigualdade colocada no Brasil e no mundo passa pela desigualdade de gênero, que é a desigualdade de oportunidades, remuneração e reconhecimento entre homens e mulheres. 

As mulheres já ganham 20% menos que os homens que desempenham a mesma função. No quadro de pandemia ou crise econômica, as primeiras demissões sempre são de mulheres, sempre com a justificativa de que as mulheres são descartáveis para empresas porque precisam cuidar dos filhos e demais familiares. 

Quando ela consegue voltar ao trabalho, o mercado já não é mais o mesmo, o que a coloca dentro do quadro de trabalho informal e sem direitos.

Isso a coloca em uma condição desigual, em que a autonomia econômica precisa desempenhar o papel de construir políticas públicas para que essa mulher seja inserida no mercado de trabalho em condições dignas. 

Para isso, faremos parcerias com o Ministério do Planejamento. E temos, ainda, o desafio de trabalhar a questão da desigualdade salarial.

Porque se criou uma mística de que as mulheres que estão no mercado de trabalho já estão em vantagem. No entanto, precisamos que haja cargos de chefia ocupados pelas mulheres também.

A senhora, por duas gestões dos governos da presidenta Dilma e do presidente Lula, já estava inserida no Ministério das Mulheres. Em 2003 havia a empolgação do primeiro ano de mandato de Lula. Este ano, quando a senhora assume o cargo de ministra, o Brasil está muito diferente do de 2003?

Nós temos hoje um Brasil do ódio, que nos últimos anos foi alimentado pelo preconceito e pela misoginia. Nós temos um Brasil que mata a pessoa por sua orientação sexual na rua, que a espanca. 

Um País que mata o pai que anda de mão dada com o filho, por presumir que se trata de um casal homoafetivo. Esse é o Brasil que nós estamos vendo hoje e que, nos últimos quatro anos, teve de sua autoridade máxima [Jair Bolsonaro] a permissão para que essas barbáries fossem cometidas. 

Nós temos um País que autoriza, por meio da liberação de armamento aos civis, que os conflitos sejam resolvidos de forma violenta.

Quando fizemos a Lei Maria da Penha, tinha a justiça restaurativa, o juiz de pequenas causas, e era nesse âmbito que os conflitos eram resolvidos, desde problemas do trânsito até o gato do vizinho. 

E esses problemas hoje estão sendo resolvidos com armas, e não pelos meios oficiais. Essa é uma diferença fundamental deste País que o presidente Lula tem encontrado e que temos o desafio de enfrentar. 

Então, sim, é um Brasil muito diferente. Em 2003, quando nós assumimos, a esperança era de construirmos um País melhor, com uma democracia fortalecida e de participação. Hoje, estamos focados na reconstrução do Brasil.

Os números aqui no Estado assustam. Em todo o ano de 2022, tivemos 50 feminicídios, segundo a Secretaria de Estado de Justiça. Por hora, duas mulheres sofrem algum tipo de violência em MS. Além da questão punitiva da Lei Maria da Penha e da Lei do Feminicídio, existem outras estratégias para barrar a violência contra a mulher?

Durante os próximos quatro anos não teremos tempo para resolver todos os problemas que estamos encontrando no País. Mas o que nós temos como meta e objetivo é fazer o possível para que as diferentes formas de violência que estão acontecendo em todos os âmbitos, doméstico, trabalhista, sexual e política, sejam reduzidas. 

O desafio é que precisamos assegurar, como União, condições de atendimento às mulheres que precisam de ajuda, e que elas tenham a chance de sair dessa condição de violência. Precisamos atuar para que a mulher tenha a chance de fazer o boletim de ocorrência, ser assistida e tratada com dignidade. 

Estamos entrando no lugar de uma mulher que disse para todas as mulheres do País que elas precisavam ser ‘recatadas e do lar’, que a cor rosa é de menina e a azul é de menino. Tivemos todo um processo de desconstrução do papel da mulher nos últimos seis anos, algo muito grave para as políticas públicas.

E reconstruir todos os direitos das mulheres, com autonomia financeira e o poder de decisão sobre seu próprio corpo, será nosso grande desafio, haja vista que não temos 10% dos recursos de quando eu deixei a Pasta em 2016.

Para se ter uma ideia, deixamos na gestão da presidenta Dilma R$ 263 milhões no ministério, e estamos herdando por volta de R$ 26 milhões, o que mostra a prioridade que o governo passado lidava com a Pasta.

Mato Grosso do Sul aparece sempre nas primeiras posições no ranking de feminicídio elaborado pelo Fórum Brasileiro de Segurança Pública (FBSP). Como a senhora avalia esse dado?

Mato Grosso do Sul aparece no topo do ranking de feminicídio por tipificar de forma correta os crimes. Precisamos que haja uma classificação nesses dados que apontam em quais estados os dados contam com a tipificação. Isso não significa que os homens daqui são menos violentos.

O que podemos dizer é que não temos elementos para afirmar que MS é uma das unidades federativas mais violentas se os outros estados não nos dão elementos para comparação. Precisamos criar um elemento que seja de prevenção ao feminicídio, e o primeiro passo é desarmar a população.

Não temos como discutir o enfrentamento ao feminicídio se mantivermos os homens armados. Se formos analisar os dados dos últimos quatro anos, além de ter aumentado a crueldade, a forma como as mulheres morreram deixou de ser por arma branca e passou a ser por arma de fogo. 

O presidente Lula se elegeu em um meio polarizado. Como a senhora vai lidar com as mulheres que não votaram no atual presidente?

Nós não vamos fazer políticas públicas para quem votou no Lula ou no Bolsonaro. Eu sou a ministra da Mulher do Brasil, e de todas aquelas que escolheram residir em nosso País. As políticas serão pensadas e executadas para todas. 

Eu vou falar com o governador de São Paulo, Rio de Janeiro, Goiás, Mato Grosso do Sul, Bahia e de todas as demais unidades da federação para trabalharmos em prol de todas as mulheres. 

Houve um retrocesso na garantia dos direitos das mulheres nos últimos anos. Então nosso objetivo principal é fazer com que as mulheres não tenham perda de direitos. 

Perfil

Aparecida Gonçalves - Cida Gonçalves é especialista em gênero e em enfrentamento à violência contra mulheres e ativista de defesa dos direitos das mulheres há mais de 40 anos.

Natural de Clementina, interior de São Paulo, Cida construiu sua trajetória política em Campo Grande, onde foi coordenadora do movimento popular de mulheres nas décadas de 1980 e 1990.

Como representante desse grupo, coordenou o processo de articulação e fundação da Central dos Movimentos Populares no Brasil.

Nos anos 2000, foi assessora da Coordenadoria à Mulher da Secretaria de Assistência Social, Cidadania e Trabalho do Estado em uma das gestões do governador Zeca, do PT. Nos governos de Lula e Dilma Rousseff, entre 2003 e 2016, foi Secretária Nacional de Enfrentamento à Violência Contra as Mulheres, atuando na construção da Lei Maria da Penha e da Lei do Feminicídio.

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