Detalhamento geográfico e jurídico feito ao longo de seis meses transformou-se em um relatório que concluiu que existem 630 propriedades privadas rurais dentro de terras reivindicadas por indígenas, em territórios delimitados pela Fundação Nacional dos Povos Indígenas (Funai), somente em Mato Grosso do Sul.
O Estado, inclusive, é a unidade federativa onde a iniciativa privada mais está presente nessas áreas, totalizando 238,9 mil hectares, o equivalente a mais de 238 mil campos de futebol sendo disputados – praticamente o tamanho de Luxemburgo, país europeu.
Esse levantamento, denominado “Os invasores”, é inédito e foi produzido pelo Observatório do Agronegócio no Brasil, sendo lançado nesta semana por conta do Dia dos Povos Indígenas, celebrado no dia 19.
O estudo procura levantar detalhes para que autoridades como o Ministério Público Federal, o Ministério Público de Mato Grosso do Sul, a própria Funai e o governo federal atuem para resolver conflitos que já duram décadas.
Essa sobreposição de fazendas em territórios reivindicados por indígenas no Estado resulta em embates sangrentos. A região com maior repercussão nessa disputa vitimou o povo guarani-kaiowá, no sul de MS.
Ainda, o estudo confirmou que é por aqui que a iniciativa privada mais avançou nesses territórios, mesmo que as terras estejam homologadas e regularizadas para que os indígenas sejam os proprietários.
São 10,9% de toda a área de 238.907,69 hectares que estão regulares e deveriam estar sob a posse total de indígenas, porém, não é o que ocorre. Esse problema específico se concentra na Terra Indígena (TI) Kadiwéu, no município de Porto Murtinho.
O contexto fica ainda mais tenso porque essa área faz divisa com o Paraguai, o que amplia os habitantes para além dos brasileiros na disputa por terra. Há a mesma situação nas TIs Sete Cerros e Arroio-Korá, no município de Paranhos.
A questão resulta em violência e em centenas de mortes. Entre 1985 e 2021, 447 pessoas foram assassinadas nessa disputa, principalmente indígenas. As TIs com sobreposição de propriedades particulares apresentam os maiores índices de morte violenta.
Em comparativo com outros estados, por exemplo, o Maranhão, no mesmo período, foram 59 assassinatos. Já a Bahia registrou 65 mortes. Esses dados também estão inseridos no relatório do Observatório do
Agronegócio no Brasil. Além das mortes, a sobreposição de fazendas em territórios homologados e regularizados constitui crime federal.
A Lei de Registros Públicos especifica esse crime no artigo 246. Também há previsão legal que trata do assunto no Estatuto do Índio. Contudo, a disputa acaba sendo prolongada na Justiça por décadas e ocorre, segundo o levantamento, principalmente nos limites entre o território indígena e o imóvel rural.
Além da incapacidade do governo federal em conseguir fiscalizar essas questões, com aparelhamento deficitário do Instituto Nacional de Colonização e Reforma Agrária (Incra) e da Funai, ainda ocorre confusão de dados cartoriais.
A maior sobreposição encontrada na pesquisa é em Mato Grosso do Sul, em uma fazenda que invade 10,151 hectares da TI Kadiwéu. Há sobreposições que variam entre 10 hectares, 100 hectares e acima de 1 mil hectares.
“Todo dia é dia dos povos indígenas e todo dia será dia de entender melhor quem ameaça suas terras, portanto, da preservação dos biomas e da diversidade. Este trabalho se propõe, com dados inéditos, a lançar novas luzes sobre quem realmente promove essa invasão territorial e as violências decorrentes”, apontou o diretor responsável pelo observatório, Alceu Luís Castilho.
“O planeta que olha para o Brasil a cobrar a preservação da Amazônia é o mesmo planeta que precisa conhecer melhor quem financia as destruições”, opinou.
Para conseguir mapear o cenário em Mato Grosso do Sul e em outros estados brasileiros, houve cruzamento da base de dados fundiários do Incra.
As informações de imóveis rurais foram procuradas e cruzadas no Sistema de Gestão Fundiária (Sigef), no Sistema Nacional de Cadastro Rural (SNCR) e no Sistema Nacional de Certificação de Imóveis (SNCI).
Ainda, foi realizado o cruzamento com os metadados de cobertura e uso do solo da plataforma MapBiomas – Coleção 7, com dados disponíveis até 2021, para obter as informações sobre a destinação econômica das áreas sobrepostas.
REGIÕES TENSAS
As sobreposições em Mato Grosso do Sul estão concentradas nos municípios de Laguna Carapã, Caarapó, Juti, Amambai e Iguatemi. Há casos também em Porto Murtinho, Paranhos, Aquidauana e Corumbá. A Terra Indígena Guyraroká, pertencente ao povo guarani-kaiowá, tem 29 sobreposições, ou seja, 96% de sua área.
Já na TI Taquara existe uma sobreposição que ocupa 100% da área. A TI Jarara (guarani-kaiowá) está na mesma condição. A TI Dourados-Amambaipeguá I tem 197 sobreposições, e a TI Iguatemipeguá I tem 64 sobreposições. Todos esses territórios indígenas são de raízes da etnia guarani-kaiowá.
As fazendas que estão nesses territórios e possuem produção de soja e de grãos estão nas TIs Taquara, Guyraroká, Sombrerito e Dourados-Amambaipeguá I. A exploração de madeira ocorre na TI Iguatemipeguá I, em 2.071 hectares sobrepostos.
O setor da pecuária está nas áreas das TIs Cachoeirinha (13.626 hectares), Kadiwéu (mais de 15 mil hectares somados em duas áreas diferentes) e Iguatemipeguá I (5.835 hectares).
O setor sucroenergético sobrepôs áreas na TI Guyraroká e em quatro fazendas diferentes sobre a TI Dourados-Amambaipeguá I.
Saiba: Pelo estudo, foram identificadas 1.692 sobreposições de fazendas em terras indígenas no País, representando 1.187.214,07 hectares (o equivalente ao território do Líbano).