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Dourados Fazenda que já foi escola para indígenas hoje está arrendada e ameaça os guarani-kaiowá Enquanto indígenas lutam por terra, ONG criada para evangelizá-los fatura com soja e expõe aldeia ao risco de contaminação por agrotóxicos 5 JUN 2023 • POR Eduardo Miranda • 09h00
Criança guarani-kaiowá caminha pela divisa da aldeia Jaguapiru e da Fazenda Caiuaná, que pertence à Missão Caiuá   Mariana Rocha

Confinados em uma porção de terra entre condomínios de luxo e plantações de soja e de milho, 13 mil indígenas de duas aldeias guarani-kaiowá estão submetidos à segregação e expostos à contaminação por agrotóxicos em Mato Grosso do Sul.

O vetor do problema é a Fazenda Caiuaná, de 384 hectares, que pertence à Missão Evangélica Caiuá e está arrendada a terceiros para o plantio. Por ironia, essa é a ONG que tem convênios ativos com a União no valor de R$ 2 bilhões para prestar assistência de saúde a 291,6 mil indígenas em todo o Brasil, 73 mil deles em Mato Grosso do Sul.

Há relatos de mortes de animais de indígenas que vivem em casas imediatamente vizinhas à aldeia. Também há queixa dos guarani-kaiowá de que os defensivos agrícolas teriam causado cegueira na moradora da aldeia Jaguapiru Elza Gonçalves Benites, de 72 anos.

Vizinha à aldeia Jaguapiru, a Fazenda Caiuaná está localizada em frente à aldeia Bororo, na rodovia MS-156, que liga as cidades de Dourados e Itaporã. Com um contrato de arrendamento ativo desde 2018, gerou uma renda de R$ 1,34 milhão no ano passado, resultado da colheita de 7.864 sacas de soja repassadas pelos arrendatários. 

A fazenda já havia sido alvo de investigação do Instituto Brasileiro do Meio Ambiente e dos Recursos Naturais Renováveis (Ibama) por usar agrotóxico proibido no Brasil, contrabandeado do Paraguai. Em 2015, o funcionário de um ex-arrendatário foi condenado a dois anos de prisão. 

Agora, denúncias de contaminação por agrotóxicos oriundos dessas lavouras partem não só dos indígenas, mas também de organismos ligados à Organização das Nações Unidas (ONU). A subsecretária-geral e assessora especial para a Prevenção do Genocídio da ONU, Alice Wairimu Nderitu, esteve em maio nas aldeias Jaguapiru e Bororo, vizinhas à fazenda da Missão Evangélica Caiuá. Além da pobreza extrema e dos casos de prisões ilegais a que os indígenas são submetidos, ela também relatou contaminação de guarani-kaiowás por agrotóxicos.

“Agricultores pulverizam agrotóxicos nocivos em suas lavouras, que são inalados pelos guarani-kaiowá, o que causa sérios problemas de saúde na população, incluindo mortes de crianças”, acusou a subsecretária da ONU. Ela não chegou a citar a Missão Evangélica Caiuá nominalmente, mas, em seu relatório, revelou que há falta de prestação de contas pelos líderes comunitários. 

“São alegações graves e que deveriam ser seriamente investigadas”, disse a comissária da ONU. No mesmo documento, ela ainda pediu a “demarcação urgente” de terras e mencionou o conflito agrário no Estado.

A mulher indígena Francisca Gonçalves Vogarim, filha de Elza, que ficou cega por causa da exposição excessiva aos agrotóxicos, conta o drama de conviver com a prática dos arrendatários da fazenda da Missão Caiuá. “O veneno é o que mais prejudica nós. Antigamente tinha horário para passar o veneno, mas há um tempo a quantidade aumentou muito. No ano passado morreram dois cavalos”, relata. 

“Eles passam veneno de dia, à noite. Minha mãe tem 72 anos e, como é idosa, tem imunidade baixa, e nos últimos anos foi perdendo a visão e sofrendo com a quantidade de veneno. Ela fica mal mesmo: os braços coçam, os olhos coçam e ela tem um mal-estar permanente no corpo”, completa Francisca.

Francisca Gonçalves Vogarin e Simone Bogarin, moradoras da aldeia Jaguapiru, mostram a fazenda da Missão Caiuá - Mariana Rocha

O ativista guarani-kaiowá Magno Souza, que em 2022 chegou a candidatar-se ao governo de Mato Grosso do Sul pelo PCO, é um dos que denunciam os danos causados pelos agrotóxicos. 

“Já vi muitos animais morrerem. Um colega meu precisou de atendimento médico no ano passado, na época do plantio, e tem mais: um riacho que passa nos fundos da aldeia e também na fazenda ao lado tinha peixes no passado. Quando eu era criança, pescávamos lá. Hoje, isso não é mais possível”, denuncia. 

CONFLITO

As acusações de contaminação e de desvios de função da fazenda da Missão Evangélica Caiuá se dão em meio ao agravamento do conflito entre fazendeiros e indígenas guarani-kaiowá, que reivindicam a demarcação de pelo menos 16 reservas em Mato Grosso do Sul, que totalizam em torno de 224 mil hectares. 

A ocupação de fazenda mais recente, em Rio Brilhante, cidade localizada na metade do caminho entre Dourados e Campo Grande, é de uma propriedade de tamanho similar à da Fazenda Caiuaná, que está arrendada.

Em março, em torno de 80 indígenas guarani-kaiowá ocuparam a Fazenda do Inho, de 380 hectares, que pertence ao engenheiro agrônomo José Raul das Neves. A ocupação permanece, e Neves colheu apenas parte da soja plantada. 

No mês passado, o proprietário das terras queixou-se ao Correio do Estado de que a sua fazenda não está incluída nos estudos de 2008 da Fundação Nacional dos Povos Indígenas (Funai), que verificaram 16 terras indígenas para demarcação em Mato Grosso do Sul. “Se eu não puder plantar, não tenho outro meio de vida. Não tenho outra propriedade”, lamentou.

No caso da fazenda da Missão Evangélica Caiuá, ela contribui para confinar os indígenas em espaços que descaracterizam o seu modo de vida. Por causa da expansão da zona urbana de Dourados, as aldeias Jaguapiru e Bororo – que estavam na zona rural na época da fundação da Missão Evangélica Caiuá, em 1928 – foram alcançadas por bairros da cidade. Ao sul da Jaguapiru estão condomínios de luxo de Dourados e, ao norte, a Fazenda Caiana (já no município de Itaporã).

O sociólogo Paulo Cabral ressalta que os 13 mil indígenas das duas aldeias têm um histórico de segregação em Dourados. “Os indígenas nunca fizeram parte da sociedade douradense. Sempre estiveram à margem, integrando o contingente das bases da pirâmide”. 

Na mesma região das aldeias, em um dos anéis viários de Dourados, está o Hospital Porta da Esperança. O local é considerado a vitrine da Missão Evangélica Caiuá, sendo o principal propósito do consórcio de missionários presbiterianos, que teve início em 1928, quando o reverendo Albert Maxwell visitou a região durante sua jornada de evangelização de indígenas brasileiros.

FAZENDA PERDEU FUNÇÃO

Apesar da demanda dos indígenas por terra e por alimento, com o tempo, a Missão Evangélica Caiuá acabou desvirtuando o propósito da Fazenda Caiuaná. Conforme documento da Câmara dos Deputados de 1957, ao qual o Correio do Estado teve acesso, a Fazenda Caiuaná tinha uma escola em sua sede. Nela, o propósito era o de alfabetizar os indígenas e, entre outras missões, de ensinar-lhes técnicas de agricultura.

O objetivo da Fazenda Caiuaná consta de um Projeto de Lei do então deputado federal Castro Pinto (UDN-MT), que, à época, tinha como finalidade liberar um crédito de 2 milhões de cruzeiros para a Missão Caiuá, em Dourados. O projeto foi aprovado pela Câmara e sancionado pelo então presidente Juscelino Kubitschek (PSD).

“Esta escola está a cargo da profª Zéria Iapechino e fica situada na Fazenda Caiuaná, onde a Missão está procurando desenvolver o trabalho, especialmente de agricultura. Estão matriculadas 42 crianças”, aponta o documento redigido há 66 anos. Desde 2018, no entanto, a propriedade está arrendada a produtores de soja e de milho.

PALAVRA DE MISSIONÁRIO

O diretor-presidente da Missão Evangélica Caiuá, reverendo Geraldo Silveira Filho, afirmou que nunca houve relatos de contaminação por agrotóxicos por parte da Fazenda Caiuaná e seus arrendatários. “Este arrendamento é antigo e nunca houve uma reclamação dessas”, disse o pastor presbiteriano, que informou que apuraria as denúncias.

Segundo Silveira Filho, o vínculo com os arrendatários da fazenda teve início em meados do século passado, antes mesmo de ele chegar à missão. 

A MISSÃO

A Missão Evangélica Caiuá é administrada por um conselho formado por pastores de três igrejas: Presbiteriana do Brasil (IPB), Presbiteriana Independente do Brasil (Ipib) e Presbiteriana Indígena. A organização está se preparando para seu centenário. “A serviço do índio, para a glória de Deus”, diz o lema que a ONG carrega desde a sua fundação. 

Os missionários, além da assistência à saúde indígena (a maior atuação da organização), também atuam em outras frentes: espiritual (há igrejas em 32 aldeias de Mato Grosso do Sul) e educacional (a missão mantém quatro escolas em parceria com o poder público). 

Placa na MS-156 mostra que o território onde está localizada a Missão Caiuá, a Fazenda Caiuaná e Aldeia Jaguapiru está próximo - Mariana Rocha

Desde 1928, quando foi fundada pelo revendo norte-americano Albert Maxwell, a organização cresceu muito e mantém convênios com Distritos Sanitários Especiais Indígenas (DSEIs) dos três estados brasileiros que estão no foco das denúncias de maus-tratos e de desrespeito à dignidade dos povos originários: Mato Grosso do Sul (onde surgiu), Roraima e Amazonas.

Na década passada, antes de ter sido investigada pelo Tribunal de Contas da União (TCU) e pela Polícia Federal, chegou a atuar em 18 DSEIs de todas as regiões do Brasil. Depois de suspeitas de mau uso do dinheiro público, contratação de funcionários fantasmas, de ser usada como cabide de emprego, entre outras irregularidades constatadas pelo TCU, reduziu sua atuação, mas continuou com o serviço em oito distritos.

Além da população guarani-kaiowá, a Missão Evangélica Caiuá é responsável pelo atendimento aos yanomami, cujas terras estão localizadas em Roraima e no Amazonas e estão sendo invadidas por garimpeiros ilegais. 

No início deste ano, o Ministério dos Povos Indígenas e o Ministério da Saúde flagraram indígenas dessa etnia em situação degradante. Dados do próprio Ministério da Saúde indicam que, entre 2019 e 2022, houve, no território yanomami, 177 mortes por desnutrição, contra 41 nos quatro anos anteriores.

A Missão Caiuá também é responsável pela atenção à saúde indígena no Vale do Javari, no Amazonas, na tríplice fronteira com a Colômbia e o Peru, região conhecida por manter algumas das últimas populações indígenas isoladas das Américas. Foi lá que, em 5 de junho do ano passado, o jornalista inglês Dom Philips e o indigenista brasileiro Bruno Pereira foram assassinados. 

Todos os convênios ativos da missão ultrapassam a cifra de R$ 2 bilhões. A maioria tem validade de cinco anos, e quase todos vencem em dezembro de 2023. Só neste ano, eles garantirão R$ 247,9 milhões em repasses federais à ONG. No ano passado, foram R$ 243 milhões. Desde 2011, entre contratos ativos e já encerrados, a Missão Evangélica firmou convênios no valor de R$ 3,9 bilhões com a União. 

Apesar de todo esse volume de recursos, a Missão Evangélica Caiuá diz passar por dificuldades financeiras. Em seu último relatório para o conselho que administra a organização não governamental, seu presidente, reverendo Geraldo Silveira Filho, relata que precisa levantar neste ano R$ 2 milhões para custear despesas trabalhistas e para a manutenção do hospital em Dourados, que atende 14 mil indígenas.

Apesar do trabalho missionário da Caiuá feito com os indígenas de Mato Grosso do Sul há quase um século, em 2007, houve 19 mortes de bebês e de crianças por desnutrição nas aldeias Jaguapiru e Bororo, conforme registros do Ministério da Saúde e da Fundação Oswaldo Cruz. 

OUTRO LADO

O diretor-presidente da Missão Evangélica Caiuá, Geraldo Silveira Filho, argumenta que a Missão Evangélica Caiuá, apesar dos valores vultosos dos convênios, enfrenta dificuldades porque faz apenas a gestão de recursos humanos das contratações dos Distritos Sanitários Especiais Indígenas (DSEIs) nos estados onde tem convênio. “Não temos um tostão de porcentagem sobre estes valores. Nada! Todo o valor recebido vai para a gestão de RH”, garante. 

Perguntado sobre os motivos que levam a missão evangélica a assumir convênios de altos valores e ainda queixar-se de dificuldades para se manter, ele justifica. “Por que a missão faz isso? Por idealismo. Temos um hospital que nos qualifica para participar do chamamento. Se não fizermos isso, nossos indígenas vão ficar desassistidos”.

Sobre as dificuldades que os indígenas enfrentam na área da saúde nos estados de Mato Grosso do Sul, Amazonas e Roraima, mesmo com os altos valores repassados aos convênios que a missão é titular, Silveira Filho repassa a responsabilidade para os DSEIs. 

“A falha não está na contratação do profissional, está na contratação do transporte, na compra do insumo, que é feita pela Sesai [Secretaria Especial de Saúde Indígena]. Temos feito reiteradas denúncias de que estamos sem transporte, sem medicamentos”, acrescenta. (Colaborou Mariana Rocha, de Dourados)

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