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Mais de 48 mil indígenas vivem em áreas de MS que podem ser contestadas

Marco temporal, que está na pauta do STF e do Congresso, pode restringir território dos povos para oito áreas no Estado

14 JUN 2023 • POR rodolfo césar, de corumbá • 09h00
  Valdenir Rezende/arquivo

O Supremo Tribunal Federal (STF) não bateu o martelo sobre qual vai ser a questão jurídica que vai nortear a definição de território indígena no Brasil. Houve votação na semana passada, mas o ministro André Mendonça pediu vistas, o que adia por até 90 dias a análise do julgamento, mantendo um cenário de indefinição sobre os territórios indígenas e suas demarcações.

Para o estado de Mato Grosso do Sul, isso representa a perspectiva que mais de 48 mil indígenas poderão ficar de fora dos territórios que atualmente ocupam.

O marco legal em análise no STF, por meio do Recurso Extraordinário (RE) nº 1.017365, poderá estabelecer que os territórios indígenas só poderão ser definidos no caso de haver comprovação de que a área já estava regularizada para uma etnia antes da promulgação da Constituição Federal de 1988.

Nessa circunstância, em Mato Grosso do Sul, só estariam validadas oito áreas, que são: Aldeia Limão Verde, Amambai, Dourados, Jaguapiré, Pirajuí, Porto Lindo, Sassoró e Taquaperi. Elas foram regularizadas antes de 1988, conforme apontou o Conselho Indigenista Missionário (Cimi).

Nesse território, de cerca de 16,3 mil hectares, vivem pouco mais de 34,1 mil pessoas. Caso o marco temporal seja consolidado, esses indígenas estariam fora de possíveis disputas judiciais. As demais áreas ficariam sem sustentação jurídica para continuarem existindo.

“A partir do marco temporal vai poder haver a suspensão da demarcação, e cada fazenda poderá ingressar com uma ação pedindo a revisão. Será uma enxurrada de ações de despejo”, previu Matias Hempel, funcionário do Cimi que acompanha de perto a situação indígena no Estado.

Ele acrescentou que, mesmo sem a definição do marco temporal, já existe a discussão na Justiça Federal do Tribunal Regional Federal da 3ª Região e na Justiça Estadual de MS sobre os territórios que estão regularizados.

O secretário-executivo do Ministério dos Povos Indígenas, Luiz Eloy Terena, que é de Mato Grosso do Sul, sustentou que o marco temporal é um precedente para criar mais tensão na zona rural.

“Faz-se necessário refutar o marco temporal e reafirmar o direito já consagrado na Constituição, que foi categórica ao conceber o direito originário às terras indígenas”, escreveu em sua conta no Twitter.

No Estado, conforme dados do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE), há 82.811 indígenas vivendo em uma área que equivale a cerca de 2% do território estadual. 

Se o marco temporal validar que os territórios indígenas que podem estar regularizados correspondem aos definidos antes de 1988, há uma área de mais de 888 mil hectares passíveis de questionamentos e pedidos de reintegração de posse.

O debate no STF em torno da definição das demarcações de terras indígenas começou em 2009, portanto, uma problemática que já se arrasta há 14 anos.

Nessa ação, figura a Fundação Nacional dos Povos Indígenas (Funai) e o Instituto do Meio Ambiente de Santa Catarina, além de envolver uma dezena de outras instituições.

Nesse recurso, há o julgamento sobre a definição do estatuto jurídico-constitucional das relações de posse das áreas de tradicional ocupação indígena e desde quando deve prevalecer essa ocupação (justamente o marco temporal).

A Fundação do Meio Ambiente do Estado de Santa Catarina (Fatma) requereu posse de uma área declarada administrativamente como de tradicional ocupação indígena, localizada em parte da Reserva Biológica Estadual do Sassafrás (SC).

A última vez que o tema foi retomado foi em 2021. Na época, o ministro Edson Fachin afirmou que a data da promulgação da Constituição Federal, em 5 de outubro de 1988, não pode ser considerada como o marco temporal para a aferição dos direitos possessórios indígenas sobre a terra. Fachin é o relator do RE nº 1017365.

No dia 7, depois que o ministro Alexandre de Moraes se posicionou em acordânça com o relator, deixando o placar do julgamento em 2 a 1, o ministro André Mendonça apontou que o tema ainda precisa de mais análise.

“[Há] necessidade de maior reflexão da matéria, razão pela qual peço vista, ao mesmo tempo, me comprometendo com Vossa Excelência de voltarmos à temática no prazo comum, a tempo para uma reflexão de todos nós”, disse Mendonça, em sessão pública, transmitida pelo canal do STF no YouTube.

A posição do ministro causou reclamação entre os demais presentes no plenário e gerou ainda mais expectativa do lado de fora do STF, pois existia a perspectiva de que se poderia ter uma posição do Judiciário em torno do tema.

A presidente do STF, ministra Rosa Weber, confirmou que pretende voltar com a pauta antes de outubro. “Eu só espero – e tenho certeza que vai acontecer – que eu tenha condições de votar, porque eu tenho uma limitação temporal para proferir o meu voto”, afirmou. Ela vai completar 75 anos em setembro e, por conta disso, recebe aposentadoria compulsória.

O ministro André Mendonça afirmou para Rosa Weber que a pauta deve voltar ao plenário mesmo que ele não tenha o voto definido.

NO CONGRESSO

Parlamentares se anteciparam à votação no STF e aprovaram, no dia 30 de maio, o texto-base do Projeto de Lei (PL) nº 490/2007, que trata do marco temporal. Foram 283 votos a favor e 155 contra.

De acordo com esse texto, a demarcação de terras indígenas valerá somente para as áreas que eram ocupadas por povos tradicionais até 5 de outubro de 1988, data da promulgação da Constituição Federal. O projeto já está no Senado desde o dia 1º e tramita como PL nº 2.903/2023.

A senadora por Mato Grosso do Sul Tereza Cristina (PP) já fez manifestação sobre o tema. Ela defendeu o debate e a votação definitiva. “Vai trazer segurança jurídica para os dois lados e vai trazer paz para o campo”, afirmou à Agência Senado.

SAIBA

Matéria publicada no Correio do Estado no dia 1º de junho mostrou que, em MS, segundo dados da Fundação Nacional dos Povos Indígenas (Funai), existem 33 terras confirmadas em posse dos indígenas (4 homologadas e 29 regularizadas, isto é, quando chega ao fim o processo de demarcação).

Desse total, 26 terras poderiam sair da posse dos povos nativos para voltar aos fazendeiros, caso o marco temporal seja aprovado.