A declaração do presidente da República, Luiz Inácio Lula da Silva (PT), de que a sociedade não precisa saber como os ministros do Supremo Tribunal Federal (STF) votam nos julgamentos foi rechaçada pelos juristas ouvidos pelo Correio do Estado, que consideram o posicionamento dele vai contra o princípio de transparência e ocorre em meio às críticas ao ministro Cristiano Zanin, recentemente indicado pelo petista.
O presidente da Ordem dos Advogados do Brasil em Mato Grosso do Sul (OAB-MS), Bitto Pereira, declarou que a publicidade dos atos processuais, incluindo as sessões de julgamentos, é uma garantia constitucional. “Portanto, a OAB/MS é contra qualquer proposta que contrarie a publicidade dos atos processuais na forma prevista na Constituição Federal”, ressaltou.
Já o conselheiro federal da OAB no Conselho Nacional de Justiça (CNJ), Mansour Elias Karmouche, destacou que se trata de uma proposta inconstitucional porque viola o princípio da publicidade garantida da Constituição de 1988. “Aliás, um dos princípios basilares do Estado Democrático de Direito, além de ser um retrocesso em termos de transparência cujo tempo remonta ao período da ditadura militar, o que é inaceitável sob qualquer ponto de vista”, argumentou.
Mansour Karmouche completou que, além disso, em países desenvolvidos a publicidade do voto da Suprema Corte é garantia democrática em favor da cidadania. “A proposta não encontra albergue no mundo moderno. O magistrado quando assume a função de dizer o direito para sociedade está sujeito ao escrutínio público de suas decisões e isso é fundamental para se garantir a imparcialidade, transparência e publicidade de todo e qualquer ato jurídico. Já se foi o tempo onde uma ideia dessas poderia ter espaço para discussão e ficou no período negro da história brasileira, o que seria um inadmissível retrocesso”, afirmou.
Na análise do advogado campo-grandense André Borges, que atua há décadas em causas que tramitam em instâncias superiores, o voto secreto dos ministros da Suprema Corte não pode ser instituído no Brasil. “Seria um retrocesso, não admitido pela Constituição, que impõe a publicidade e transparência, inclusive do Judiciário. Prioridades quanto ao STF seriam outras, como menos envolvimento na política, mais observância da separação dos poderes e efetivo cumprimento da vontade do constituinte. Isso tudo já seria ótimo”, assegurou.
Para o advogado Leonardo Avelino Duarte, a Constituição Federal proíbe votos secretos de ministros da Suprema Corte. “O que vários constitucionalistas sugerem é a mudança do formato atual, que permite debates públicos em plenários, para um modelo mais reservado, em que os debates entre os ministros seriam realizados a portas fechadas, somente com a presença dos advogados e das partes”, pontuou.
Ele acrescentou que isso, de alguma maneira, já ocorre atualmente nos processos julgados no plenário virtual do Supremo. “Ambos os modelos têm as suas vantagens e desvantagens. A grande desvantagem do modelo atual é que submete o Supremo à pressão popular, pois juízes não podem julgar apenas pensando na maioria, ou na opinião popular”, opinou.
Por outro lado, conforme o jurista, temos enorme transparência no modelo atual. “Pouquíssimos tribunais constitucionais no mundo permitem debates públicos, justamente por causa da questão de erosão de legitimidade que isso pode ocasionalmente trazer perante a opinião pública quando julga contra majoritariamente. Julgamentos e decisões têm que ser públicos e devem ser submetidos à crítica. A pergunta que se faz é se os debates precisam ser públicos”, ponderou.
Na avaliação do advogado Jodascil Gonçalves, o sigilo total da votação dos ministros fere o direito à publicidade dos julgamentos, que é um princípio constitucional. “Penso que para isso ser adotado somente com uma emenda constitucional e, sinceramente, não vejo isso com bons olhos. Agora, uma reflexão que precisa ser feita sobre a publicidade das votações das decisões no STF sem dúvida é importante, mas é necessário lembrar que, apesar de o Poder Judiciário ser um dos três poderes, ele é o que não exerce funções democráticas majoritárias”, ressaltou.
Jodascil Gonçalves argumentou que, inclusive, o Poder Judiciário tem que pôr o papel contra majoritário. “Assim como a Constituição da República tem um papel contramajoritário. Nós vivemos em um Estado Democrático de Direito e não em um Estado apenas democrático. Existem direitos e garantias fundamentais que estão acima do anseio popular e os guardiões desses direitos fundamentais são a Constituição e o Judiciário e, em grau máximo, o Supremo”, reforçou.
Ele completou que a Constituição, o Judiciário e especialmente o STF têm a função muitas vezes de decidir contra a vontade popular. “O ministro carrega consigo essa incumbência de decidir muitas vezes contra o que o povo quer. Porque o Judiciário não é democrático, ele tem muitas vezes papel anti majoritário. E, nesse sentido, a extrema publicização das decisões e a politização das questões jurídicas que chegam ao Supremo parecem que, de fato, têm contaminado de política os julgamentos que deveriam se pautar pelos princípios exclusivamente jurídicos”, avaliou.
Para o advogado, a discussão de que os julgamentos no Supremo devem ou não serem transmitidos ao vivo em um canal de TV seria mais acirrada e merece uma maior reflexão porque, nesse sentido, talvez, não seja tão salutar e não contribua tanto para as funções do judiciário essa “publicitização” das votações.
“Não há contradição entre esta posição do Lula com a posição que ele tinha contra o sigilo dos atos do presidente anterior a ele, isso porque os poderes Legislativo e Executivo são democráticos e escutam exatamente o anseio popular, pois são eleitos pelo povo e para administrar e para legislar conforme os anseios do povo. Já o judiciário não, ele tem a função de garantir os direitos fundamentais independentemente do que os gritos de rua queiram”, assegurou o jurista.
No entendimento do professor de Processo Penal e Filosofia do Direito, advogado Benedicto Arthur de Figueiredo Neto, o conceito de Justiça é abarcado por elementos de ordens dogmáticas (leis), morais, éticas, políticas, sociais, individuais e coletivas a fim de que se tenha a harmonização de interesses para uma vida comum em grupo e a publicidade das decisões tomadas pelos Poderes da República é a forma mais eficaz dessa finalidade, sendo essa a razão da previsão da publicização das decisões estar prevista no artigo 93 da Constituição Federal.
“Uma decisão colegiada, como é tomada pelo Poder Judiciário nos Tribunais e Cortes Superiores, é feita com base em discussões entre os membros que a compõe e querer esconder as razões das convicções dos julgadores, ou esconder seu rosto, como propõe o presidente Lula, e apenas comunicar a decisão final, é um verdadeiro açoite à democracia”, declarou Benedicto Neto.
Ele argumentou que para rebater a fala antidemocrática do presidente Lula é preciso lembrar da lição do filósofo Michael J. Sandel, da Universidade Harvard, que, na sua obra “Justiça”, aborda o que é fazer a coisa certa. “Quando ele diz que ‘a persuasão moral seria inconcebível e o que consideramos ser um debate público sobre justiça e direitos não passaria de uma saraivada de afirmações dogmáticas em uma inútil disputa ideológica’. Quando exibe sua pior face, nossa política se aproxima dessa condição e não precisa ser assim. Às vezes, uma discussão pode mudar nossa opinião”, finalizou.