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CINEMA Que tal um filme francês? Temos quatro boas dicas para você assistir, confira Pelo menos 4 dos 20 filmes de longa-metragem exibidos na 14ª edição do Festival Varilux de Cinema Francês, em novembro e dezembro do ano passado, exploram diferentes aspectos e matizes das relações familiares 3 JAN 2024 • POR Marcos Pierry • 11h00

A família reaparece como um emblema permeado de situações-limite que, em maior ou menor grau, vão precisar ser superados ou reinventados se os personagens em jogo quiserem garantir a sua afirmação pessoal perante os próprios desejos e planos e, mais ainda, perante toda a sorte de compromissos, convenções e tabus que marcam as relações familiares.

Assim pode ser resumido o desafio a que se lançam os personagens de cada trama em pelo menos quatro das duas dezenas de produções inéditas apresentadas no País durante a 14ª edição do Festival Varilux de Cinema Francês. De novembro a dezembro do ano passado, o festival ocupou mais de 100 salas de exibição em 60 cidades brasileiras, inclusive em Campo Grande.

Além das sessões no Cinemark (Shopping Campo Grande), de 9 a 22/11, que foi o período oficial das exibições anunciado inicialmente, a produção local do Varilux realizou algumas projeções, em salas alternativas da Capital, que se estenderam até o mês o seguinte, a exemplo da Sala Glauce Rocha, na Estação Cultural Teatro do Mundo, e do Auditório Marçal de Souza Tupã-Y, no campus da Universidade Federal de Mato Grosso do Sul (UFMS).

Incesto (ou quase isso), superproteção, a descoberta do amor e a chance de reconciliação atravessam, respectivamente, os enredos de “Culpa e Desejo” (2023), de Catherine Breillat; “O Livro da Discórdia” (2023), de Baya Kasmi; “O Desafio de Marguerite”, de Anne Novion; e “Maestro(s)” (2022), de Bruno Chiche. Acompanhe, a seguir, uma breve análise de cada um dos filmes.

“CULPA E DESEJO”

O que fazer quando você percebe que se sente atraída pelo filho adolescente de seu atual marido? E o que fazer, depois de ter cedido à tentação, ao precisar lidar com a culpa que se instaura na cabeça do enteado? 
A advogada Anne (Léa Drucker) decide enfrentar o medo que toma conta de Théo (Samuel Kircher) e todo o risco da situação que se segue quando o rapaz joga toda a verdade no ventilador, move uma ação na Justiça contra a madrasta e, sim, conta ao pai sobre o envolvimento.

Anne é uma renomada especialista em abuso contra menores e treme na base só de pensar na destruição da carreira profissional e no desmoronamento da sua relação com Pierre, o marido interpretado por Olivier Rabourdin, com quem cria as duas filhas adotivas do casal.

Porém, o que era para ser apenas uma aventura sem maiores consequências se torna um problemão daqueles. Mesmo depois do disse me disse suscitado pela exposição pública do affair, a coisa continua a rolar, ainda que sob o manto da noite e da credibilidade de Anne.

Mesmo que precariamente, ela mantém o controle da situação, já que Pierre parece aceitar a versão da parceira, segundo a qual o “monstro” é o garoto, por ele supostamente estar mentindo. Fosse somente pelo choque de versões e pelo fetiche sexual no centro do novelo, “Culpa e Desejo” (“L’Été 
Dernier”) seria mais um entre tantos filmes a tratar do tema.

O ponto de vista assumido pela diretora, no entanto, salva seu longa da platitude. E os atores dão conta com folga de seus papéis. É o adolescente quem procura a mulher do pai para insistir no repeteco. Mas Anne aceita e retribui com desejo, mesmo ante a batalha pública que trava com Théo.

As imagens dão conta – sem pudor e sem culpa – do avanço de sinal do casal improvável e, sob a condução segura e despojada da diretora Catherine Breillat, materializam, em certa medida, a suspensão de julgamento que define os passos e abraços dentro de um universo em que o desejo dita as regras. Caminho que a realizadora trilha desde os anos 1960, a tematizar o tesão e a liberdade. Uma canção da banda Sonic Youth (“Dirty Boots”) reforça esse grito no filme.

“O LIVRO DA DISCÓRDIA”

Também assinado por uma diretora, “O Livro da Discórdia” (“Youssef Salem a du 
Succès”), de Baya Kasmi, centra foco em no quarentão Youssef Salem (Ramzy Bedia), um descendente de imigrantes da Argélia que vive em Paris longe da família estabelecida em Marselha e labuta para acontecer como escritor.

O sucesso só vem quando ele escreve um romance com passagens autobiográficas, em que recobra momentos da juventude e, uma vez mais, tabus sexuais relacionados ao ambiente familiar e à cultura islâmica. Com a fama, vêm os perrengues com os parentes. Sua mãe e seu pai reprovam o livro e vivem pressionando o filho pela publicação de uma obra dedicada aos heróis da história argelina.

Até a redenção chegar, o longa-metragem vai expor – com graça, mas nem por isso sem assertividade – curiosos contrastes que pontuam as diferenças culturais (e olha que não faltam desvãos em relação à cultura árabe no território francês) e também uma divertida resenha em torno do showbiz do mercado editorial na terra de Balzac.

As piadas sobre esse último aspecto que o roteiro de Baya Kasmi, escrito em parceria com Michel Leclerc e Olivier Adam, alinhava deixam a comédia de costumes da diretora ainda mais leve. Ela começou a carreira escrevendo para televisão, já na parceria com Leclerc, seu marido.

Talvez venha daí seu timing para algumas tiradas: a disputa e a inveja veladas nutridas a base de falsidade e sorrisos amarelos por duas editoras concorrentes; o fingimento de quem não leu e posa de fã para ficar bem na fita; a agente literária tarada; e por aí vai.

O maior trunfo de “O Livro da Discórdia”, porém, talvez seja o ator Ramzy Bedia, que vive o autor errático da trama. Ele está hilário, por exemplo, durante a confusão gerada quando decide trocar de personalidade com uma celebridade instantânea produzida pela mídia.

“O DESAFIO DE MARGUERITE”

A matemática existe para revelar a verdade. A frase é dita por um dos personagens do longa “O Desafio de Marguerite” (“Le Théorème de Marguerite”). 

A aspiração ao estado de pureza cristalina que, para lograr êxito na realidade, precisa de comprovações de fatos concretos para se materializar enquanto tal, na ciência dos números requer o estabelecimento e a resolução de equações quilométricas, por vezes intransponíveis mesmo para experimentados matemáticos.

Um desses enigmas, que perdura desde o século 18, é a conjectura de Goldbach, assim chamada em decorrência do matemático da Prússia que a propôs, Christian Goldbach. Trata-se de um imbróglio amparado por uma teoria que, grosso modo, diz o seguinte: todo número par acima de 2 pode ser representado pela soma de dois números primos.

Aí está – ou estaria – o desafio da Marguerite do título. Estaria porque, após um fracasso em público, justamente ao tentar descortinar o mistério, a personagem vivida pela atriz Ella Rumpf busca outra superação. 

E é nesse desvio, na guinada para fora do mundo da tabuada, que se revelam a surpresa e o encanto do filme de Anne Novion.

Os números até continuam formigando na tela. Mas é de reinvenção pessoal que se passa a falar. E, a partir disso, de misoginia e carreirismo, ligação entre mãe e filha, abandono paterno, autoconfiança e, sobretudo, da descoberta de um amor que nos possa adoçar a vida. Aliás, como já disse um samba: “A vida não é uma equação, não tem que ser resolvida”.

“MAESTRO(S)”

Talvez o mais irregular dos quatro filmes aqui em resenha, “Maestro(s)”, de Bruno Chiche, tem lá a sua beleza. Mas a impressão que fica, ao fim, é que o diretor percorre os 90 e poucos minutos da trama para franquear ao espectador a derradeira cena.

Assim, por mais lírico e confessional que possa soar o movimento de Denis Dumar (Yvan Attal), o modo como seus dramas paralelos vão tecendo o enredo acaba dando uma certa canseira que o epitáfio do longa apenas confirma.

Profissionalmente, ele é um regente de orquestra premiado rumo à consagração, mas que, em sua vida pessoal, debulha na seguinte rotina: distanciamento com o filho Mathieu (Nils Othenin-Girard), a reproduzir, quem sabe, a rejeição que recebeu do próprio pai; o namoro burocraticamente tórrido com Virginie (Caroline Anglade), a violinista bonita sem talento de quem Denis quer fazer spalla; e a relação com uma dócil e compreensiva ex-esposa, Jeanne (Pascale Arbillot), que permanece cuidando de sua carreira.

A ideia do filme é valorizar a relação entre pai e filho, triangulada com a presença do avô (e consequentemente do neto). Ok, mas o problema é não avançar com envolvimento nesse plot. O longa vale pela dupla que interpreta François (Pierre Arditi) e Hélène Dumar (Miou-Miou), pai e mãe do gatão de meia-idade regressivo vivido por Attal. E só. Chiche poderia ter apurado melhor a batuta. Deu vontade de assistir “Nota de Rodapé” (2011), de Joseph Cedar, que inspirou o diretor.