Logo Correio do Estado

ENTREVISTA EXCLUSIVA Documentar para preservar "Temos de preservar o homem, a mulher, as crianças do Pantanal", defende o fotógrafo José Medeiros, nascido em Campo Grande e radicado em Cuiabá, que, aos 51 anos, partiu para mais uma expedição do projeto Pantanal + 10 no Dia do Meio Ambiente (5/6) 4 JUL 2024 • POR Da Redação • 10h00
  Foto: José Medeiros

Como os incêndios que vêm castigando o Pantanal eventualmente afetam o seu trabalho? E como foi o primeiro mês desta nova expedição?

José Medeiros – Não é que não atrapalhe, mas já estávamos esperando essa seca prolongada. Esse vai ser um dos anos mais secos. Já estava atento com a possibilidade desses incêndios, mas não desse jeito. Afetou bastante a região de Corumbá. Estou documentando, mais focado ainda, na região do Pantanal norte, tratando as questões das nascentes, em cima dessa água que nasce e corre, mexendo com a possibilidade de ver como está a qualidade dessa água que chega até o Pantanal. Mas essa seca extrema não vai ter como ficar de fora.

Tive a primeira imersão. Conversei com alguns pesquisadores, que estudam as onças-pintadas da região, que estavam na região da divisa de Mato Grosso e Mato Grosso do Sul, em Porto Jofre [na cidade de Poconé (MT)] e lá no Rio São Lourenço, onde sai o Rio Piquiri, que é o encontro das águas como falam. Aproveitei para documentar as festas de santo na região, que têm muitas por lá nessa época. Essa devoção faz parte da minha pesquisa também.

Em que consiste essa nova etapa do seu trabalho documental?

O Pantanal +10 é esse registro de 10 anos do Pantanal. De dois em dois anos, a gente lança um livro, uma exposição fotográfica e um filme. Os primeiros foram aqueles incêndios que você conhece [de 2020], com uma exposição lá em Corumbá. Agora estou com um projeto que trata da questão das águas. O Pantanal não tem nascentes. As nascentes estão no Cerrado, onde algumas estão comprometidas. As cidades têm lixo, aquela coisa, esgoto, e cai no rio. Tudo isso vem parar no Pantanal.

A ABPO [Associação Pantaneira de Pecuária Orgânica e Sustentável, parceira da expedição] são produtores de gado do Pantanal, pessoas que estão envolvidas com uma produção sustentável em uma região onde eu tenho pouco acesso. Preciso entrar nesse Pantanal. Tenho pouco acesso a esse Pantanal ou a esses pantanais, onde eles têm associados em uma área onde preciso entrar. A importância de vir é também pelo trabalho que eles estão fazendo de preservação, [que] dialoga com o meu projeto.

Documentar esse Pantanal de gente, de pessoas. O Pantanal é cheio de histórias. A gente fala em preservar o Pantanal e temos de preservar o homem, as pessoas do Pantanal, a mulher do Pantanal, as crianças do Pantanal. Tenho grandes amigos fotógrafos que documentam a natureza, fauna e flora, e retratam bem pouco a questão do homem em seu meio. Tenho o cuidado de trazer o homem. Não adianta a gente preservar o Pantanal e esquecer das pessoas que vivem no Pantanal.

Para quais outras localidades você vai? Sabe o que lhe espera?

Estou bem aberto. Tem o Pantanal da Nhecolândia, o Pantanal do Paiaguás, do Abobral. São vários. Do [Rio] Paraguai-mirim, que é uma região agora que é bem diferenciada, que tem uma água que teve um desastre, que era o do Taquari, que abriu, alagou fazenda. Uma área onde teve um rompimento e teve um desastre, alagou. Tem um alagado imenso e se tornou um lugar diferenciado, com águas transparentes e uma floresta, como se fosse um “Avatar”. Uma história com muito peixe, muita coisa.

A logística é difícil para você entrar. Precisa de carros traçados, lugar para ficar, onde você vai dormir, como você vai. Produzir o gado no Pantanal é diferente de produzir o gado em outras áreas. Desde o fazer do laço. Estou atrás dessas histórias, do canto do fazer do laço, de como o cara leva o gado nessas comitivas. Daqui a pouco, essas pessoas não vão existir mais.

Quero trazer essas histórias dos costumes dos pantaneiros. Por exemplo, como que você espeta um couro, isso é cultural, isso é imaterial. A forma de tocar o berrante, a forma de conduzir a boiada.

Como é que é esse Pantanal ocupado? Essas pessoas têm a percepção desde o canto do passarinho até o berro do boi. Eles entendem isso, se está acontecendo alguma coisa, o esturro da onça-pintada. A gente vê que só existe isso quando você está imerso, para você sentir, se integrar e se entregar à documentação. Porque não é uma coisa que eu vou fazer em um dia, dois dias, uma semana, preciso estar imerso nessas histórias.

O que evitar durante essa aproximação?

Não posso ir com uma coisa formatada sobre o que vou encontrar. Tenho algumas percepções, mas vou encontrar histórias. Mas como são essas histórias? Desde uma história de um minhocão, essa coisa das lendas, dessa grande sucuri que habita o rio, até a coisa da devoção, dos santos, das rezas cantadas, as histórias de comitiva, de peão de boiadeiro. A gente escuta tanto, né? Na primeira imersão, eu nem fotografo. Tenho de estar invisível dentro da história, senão você não consegue documentar. Como você documenta a originalidade, a espontaneidade? As pessoas têm que te receber e te aceitar. Desde o cafezinho que você toma na casa dele, o convite para você almoçar. Você começa a quebrar, você está se aproximando. Isso é uma aproximação. 

Na hora em que você entra e traz a história das pessoas no Pantanal, você está deixando um legado de uma documentação. Isso não é para mim, é para as próximas gerações, para as pessoas entenderem como é que era o processo. Como que você conta uma história? Eu preciso ouvir as histórias dos produtores da região.

Qual a sua equipe e infraestrutura? Pode antecipar esse making of?

Gosto de andar sozinho, eu e mais uma pessoa. Tem o meu filho, o Felipe [Santana Lage Franco Medeiros], que me acompanha. A gente tem de estar muito sintonizado no olhar, no comportamento. [Com] muita gente em uma equipe, você inibe. Imagine chegar aqui com um cara fazendo uma câmera, o outro fazendo uma luz, um cara batendo claquete, o outro segurando um bastão… Não vai. Você dispersa.

Uso uma [câmera] Nikon, lentes de longo alcance e grande-angulares. Dos equipamentos de cinema, estou com uma [câmera] Black Magic 6K Pro. Drone de boa resolução para tomadas aéreas. Bem pouco equipamento porque não gosto de andar pesado. Gosto de estar leve, talvez um pouco mais de 20 quilos. “Se a sua imagem não ficou boa, é porque você não chegou perto o suficiente”, já dizia Robert Capa.

Quais são as suas referências nas imagens documentais e, de modo geral, na fotografia?

Tem um homônimo, o José Medeiros [1921-1990], um grande fotógrafo [nascido em Teresina, no Piauí] da [revista] Cruzeiro, histórico, um grande do cinema também, um grande diretor de fotografia, que foi mestre de Walter Firmo [nascido em 1/6/1937], um grande fotógrafo do Rio de Janeiro, que é meu mestre. Tenho a oportunidade de ter essa pessoa como amigo, um conselheiro. Pierre Verger [1902-1996], que documentava a Bahia, está um pouco no meu trabalho também, Cartier-Bresson [1908-2004], Robert Capa [1913-1954], um fotógrafo [húngaro] de guerra.

O Arne Sucksdorff [1917-2001], um sueco que morou no Pantanal, que implantou um cinema moderno, ganhou Oscar, morou em Cuiabá. Bebo direto na fonte e hoje sou muito amigo da esposa, que é a Maria [da Graça Sucksdorff]. Ela acompanhou muita coisa, é um personagem, estou gravando a Maria também. A história do Arne Sucksdorff contada pelo olhar de Maria. Lógico, Joel Pizzini já fez um filme [o curta-metragem “Elogio da Graça”, de 2011] que traz um pouco. Mas tenho percepções, a gente está em uma imersão grande. Maria é descendente de indígenas do Pantanal também.