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CRÍTICA

A tragédia da erva-mate

18 JUL 2024 • POR Marcos Pierry • 09h45
  Foto: Divulgação

Egresso das hordas da chanchada e da produção de um cinema mais comercial, como se isso fosse um pecado, Roberto Farias precisa ainda se cacifar como um diretor com preocupações sociais quando se lança a realizar, em 1963, “Selva Trágica”, longa-metragem que, na linha do romance de Hernâni Donato que lhe fornece o argumento, “Selva Trágica: A Gesta Ervateira do Sulestematogrossense” (1959), apresenta uma contundente denúncia sobre a exploração dos ervateiros na região de Ponta Porã.

No livro, os fatos se passam nas décadas de 1920 e 1930. Na tela, a precisão das datas é borrada, assim como não aparece o nome da empresa, Mate Laranjeira, pela qual os trabalhadores eram tratados em regime de escravidão, alimentando-se mal, multiplicando dívidas e sendo castigados por eventuais tentativas de fuga. 
No mais, a partir daí, o longa de ficção se aproxima em vários momentos da narrativa documental, em sua busca de registrar a realidade de um Brasil injusto e bem mais ignorado pelo cinema de então que o Nordeste. Como, aliás, ainda é.

Logo no início, Pablo, personagem que conduz o enredo, interpretado por Reginaldo Faria, irmão do diretor, faz sentinela do alto de uma árvore, arma em punho. Pablo é um insurgente e não admite as condições impostas. Prefere seguir errático pela mata, negociando ele mesmo a erva que recolhe por conta própria, resistindo como pode ao grilhão e, por fim, optando pelo conflito à bala após mais uma fuga. Mas Pablo também ama Flora (Rejane Medeiros) e com ela quer ter uma vida digna de marido, algo impensável naquele feudo de desigualdades, onde qualquer aldeã é mulher de todos.

Esse plot de objetificação da figura feminina, se não cede terreno ao romantismo do casal de improvável final feliz, ante as circunstâncias, não chega a dissolver por completo a promessa de amor naquele ambiente miserável. É por isso que Pablo foge com Flora e seu parceiro, interpretado por Jofre Soares. 

O destino é a fronteira e, de lá, o território paraguaio. Tudo muito difícil e, uma vez mais, improvável. A condução de Farias é linear, com uma composição de imagem que busca o documento e não o espetáculo.

A fotografia em preto e branco de José Rosa, de um cinza áspero, a mergulhar o homem na paisagem por força de quadros abertos e do plano-sequência, abre o olhar para um Roberto Farias que, do mesmo modo que exerceu até ali e depois o cinema de gêneros, souber beber na referência e na sensibilidade do neorrealismo italiano, esteio dos cinemanovistas que, muitas vezes, viam no diretor um mascate de bilheteria. Um preconceito que mesmo o engajamento do excelente “Assalto ao Trem Pagador”, filme anterior de Farias, não conseguira apagar.

“Selva Trágica”, menos imbuído de artifícios do filme de ação, fez o realizador ser visto com mais respeito pela turma do cinema de autor, pilotada por Glauber Rocha. A presença de Maurício do Vale, outro ator recorrente no cinema novo, assim como Jofre Soares, e uma possível analogia de Flora com a Rosa (Yoná Magalhães) de “Deus e o Diabo” podem dar “pano pra manga” nesse debate.

A destacar ainda o lirismo da trilha sonora, que cruza o violão de Luiz Bonfá com a harpa paraguaia (Luis Bordon) e vozes fronteiriças (Maria Helena Toledo e Trio Paraná). Visto seis décadas depois, o filme se estabelece como um marco da representação do Oeste brasileiro.

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