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DISTORÇÃO DA REALIDADE

Anuário da Segurança ignora gravidade do narcotráfico em MS

Dados da Sejusp apontam que 18 toneladas de cocaína foram apreendidas em 2023. Segundo o estudo, porém, foram apenas 7,7

19 JUL 2024 • POR Neri Kaspary • 12h17
Em fevereiro de 2023, em uma única apreensão a PRF tirou de circulação mais de 1,8 tonelada de cocaína, entre a Capital e Sidrolândia  

Apontado como um dos mais abrangentes e importantes estudos do setor, o Anuário da Segurança Pública Brasileira, elaborado pelo Fórum Brasileiro de Segurança Pública, divulgado nesta quinta-feira (18), literalmente ignora a gravidade e o tamanho do narcotráfico em Mato Grosso do Sul. 

De acordo com o estudo, no ano passado foram apreendidos 7.746 quilos de cocaína no Estado, o que representa queda de 14% na comparação com o ano anterior, quando haviam sido interceptados 9.017 quilos. 

A realidade, porém, é completamente diferente. Somente a Polícia Rodoviária Federal interceptou 15,5 mil quilos de cocaína no Estado em 2023, o que é quase 50% acima das 10,5 toneladas do ano anterior. 

A Secretaria de Justiça e Segurança Pública, Sejusp, aponta que no ano passado foram retiradas de circulação em Mato Grosso do Sul 18 toneladas de cocaína, ante 16,7 toneladas do ano anterior. 

"Destacam-se, em 2023, os estados com maiores volumes de apreensões registradas: São Paulo, com 16,9 toneladas, Mato Grosso, com 14,1 t, Paraná, com 8,3 t, Rondônia, com 3,8 t e Pernambuco, com 3,7 t", diz trecho do Anuário ao falar sobre as interceptações de cocaína no ano passado. Mato Grosso do Sul nem mesmo é citado, apesar da interceptação de volumes recores. 

MACONHA

No caso da maconha a discrepância entre o relatório do Fórum e a realidade de Mato Grosso do Sul é ainda maior. De acordo com o estudo, no ano passado foram apreendidas 87 toneladas de maconha aqui no Estado. Conforme a Sejusp, porém, o volume interceptado chegou a 420 toneladas, volume superiro ao que o Anuário diz ter sido apreendido no país inteiro. 

Com relação aos anos anteriores a diferença é ainda maior. Em 2022, segundo o Fórum, foram 96 toneladas, ante 512 computadas pela Sejusp. Já em 2021, o relatório diz que em Mato Grosso do Sul foram apreendidos 116 mil quilos, mas na prática, o volume foi de pelo menos 697 mil quilos. 

A principal explicação para esta diferença é que os responsáveis pelo estudo levam em consideração somente as apreensões feitas ou entregues à Polícia Federal. Em Mato Grosso do Sul, porém, a maior parte é feita pela PRF e pelas polícias estaduais, que em boa parte dos casos não repassam as informações à Polícia Federal. 

Por conta disso, até mesmo os dados da Sejusp são “subfaturados”, uma vez que não computam apreensões feitas pela PF ou que foram entregues a ela sem terem passado por alguma delegacia da Polícia Civil, o que ocorre em algumas interceptações feitas pela PRF o pela PM, por exemplo. 

Ou seja, nenhum órgão de segurança pública sabe exatamente o volume de entorpecentes apreendidos no país, apesar de serem eles o pivô da criminalidade de o Brasil ter a maior taxa de homicídios e mortes violentas intencionais do mundo. 

SEM NORTE

Em seu site, o Fórum Brasileiro da Segurança Pública informa que é “uma organização não-governamental, apartidária e sem fins lucrativos cujo objetivo é construir um ambiente de referência na área da segurança pública. Integrado por policiais, gestores públicos, pesquisadores, ativistas e operadores do sistema de justiça, o FBSP contribui para a transparência de informações sobre violência e na prospecção de políticas de segurança, além de pleitear a segurança pública enquanto direito social fundamental.”

Ou seja, muito mais do que simplesmente compilar números, os integrantes do Fórum têm a pretensão de nortear os debates sobre segurança pública no Brasil. 

“O fenômeno do crime organizado é hoje um dos principais desafios à segurança pública no Brasil e demanda do Estado uma nova abordagem para fazer frente ao seu crescente poder. Hoje, o país precisa lidar com ao menos 72 facções criminosas de base prisional (Senappen, 2024), que têm no narcotráfico uma de suas principais fontes de poder econômico”, diz trecho do Anuário, que tem 404 páginas.

Porém, ao ignorarem os dados reais sobre o narcotráfico, que é o foco principal das facções criminosas e está diretamente ligado aos crimes de homicídio, violência policial, roubos, furtos, entre outros, possivelmente boa parte das conclusões estudo inteiro tende a ser contaminado. 

O próprio Anuário traz números relativos a lotação de presídios e coloca o Estado com a sexta maior taxa de pessoas presas do País, sem se atentar que isso é reflexo direto do fato de Mato Grosso do Sul ser o principal corredor do narcotráfico do país. 

Segundo o estudo, a média nacional é de 419,5 presos por 100 mil habitantes. Em Mato Grosso do Sul, esta média é de 794,3 detentos por grupo de cem mil moradores. Pelo menos 40% dos quase 22 mil detentos têm envolvimento com o narcotráfico. 

O Correio do Estado procurou, por e-mail, os responsáveis pela elaboração do relatório em busca de explicações sobre a discrepância dos números, mas não obteve retorno até a publicação desta reportagem.