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ENTREVISTA

"Temos 30 focos identificados, que geraram manchas de grande proporção em MS e MT"

Superintendente falou sobre a atuação da Polícia Federal nas investigações sobre os incêndios florestais que começaram mais cedo no Pantanal este ano

20 JUL 2024 • POR Daiany Albuquerque • 09h00
CARLOS HENRIQUE COTTA D´ÂNGELO - Superintendente da Polícia Federal de Mato Grosso do Sul   Foto: Gerson Oliveira

O combate aos incêndios florestais no Pantanal de Mato Grosso do Sul e Mato Grosso começou mais cedo neste ano, porque a temporada do fogo teve início em junho, com grandes áreas atingidos. 

Por causa dos recordes para o período, o combate aos incêndios envolveu recursos do governo do Estado e da União. A atuação tem sido feita tanto no cessar do fogo, como na investigação para responsabilizar quem iniciou as chamas.

Neste ponto, a Polícia Federal tem comandado um gabinete de crise, que opera da sede da Marinha do Brasil, em Ladário, e investiga, com a ajuda de satélites, a origem dos incêndios florestais no bioma.
O entrevistado desta semana, o superintentende da Polícia Federal de Mato Grosso do Sul, Carlos Henrique Cotta D´Ângelo, falou sobre a atuação da corporação na região e sobre seu tempo à frente da reginal de MS desde abril deste ano.Confira: 

 
O senhor assumiu a Superintendência da PF este ano, como tem sido o desafio?

Muitos perguntaram quais seriam as nossas prioridades, e nós dissemos que não nos é dado escolher serviço, nós temos que atuar em todas essas áreas das atribuições da Polícia Federal, mas que cada região mantém a sua peculiaridade. E aqui, por óbvio, o que salta aos olhos é a questão da fronteira. Aí nós vamos falar do tráfico de drogas, contrabando e descaminho, que também é muito forte. O trato com a população estrangeira, que é uma obrigação nossa também.

Então, na parte administrativa, não na parte investigativa, nós temos essa questão com a população estrangeira. Temos que cuidar deles.

A questão do Pantanal já saltava aos olhos, a questão do meio ambiente, em que pese termos aqui também fragmentos de Mata Atlântica, tendo a grande importância do Cerrado, um dos biomas mais devastados do Brasil.

Então não vai atuar na corrupção? Não vai atuar nas fraudes bancárias? Não se trata disso, se trata de reconhecer o pendão de cada região. Se você estiver no Nordeste, por exemplo, você não vai ter a questão fronteiriça como uma prioridade. O contrabando e descaminho é de menos importância lá. Merece atenção? Merece, mas tu chega lá é varejo, aqui é o atacado.

E no tráfico de drogas aqui também é a mesma coisa. Então, nós temos que atender a tudo.
Mas não temos como negar que o pendão do Estado está para essa questão da fronteira, a fronteira em si está longe de significar um problema, ela pode significar muita oportunidade, e aqui a questão da [rota] bioceânica é uma dessas oportunidades que se vê com o grande desenvolvimento do Estado, então não é que a fronteira seja um problema, a fronteira é um ponto de atenção, ela pode ser um problema ou uma oportunidade a depender do gestor, como é que ele leva isso, então nós não temos esse foco em alguma coisa específica, nós temos atenção pela demanda.

A demanda aqui de crimes ambientais, tráfico de drogas, contrabando, descaminho, tráfico de armas e facções criminosas é o mais forte, mas temos que ficar com um olho no peixe e outro no gato. 
 
O senhor que solicitou o apoio dos satélites nas operações do Pantanal, quando identificou que seria necessário mais equipamentos?

Quando começou a crise eu estava em Brasília e eu não participei de uma reunião ocorrida com a cúpula do Ministério do Ambiente aqui, eu não estava presente, mas me foi informado que a preocupação da ministra e do Ministério era uma visão em tripé, que era a prevenção, o combate ao fogo, mas também a responsabilização por quem dá causa a esse fogo. Esse último eixo é aquele que nos atinge diretamente e é onde foi dito que é uma das maiores fragilidades do Estado, porque historicamente não se pune ninguém que faz isso.

Então, muita energia para o combate ao fogo, muita energia para prevenir, para que não se iniciem novos focos, mas se não romper esse ciclo vicioso de não responsabilização, a coisa tende a voltar sempre a mesma coisa. Então, nós nos vimos obrigados a agir e percebemos que nos faltava um pouco de integração entre as forças do Mato Grosso do Sul e do Mato Grosso, faltava interação com as agências federais responsáveis, Funai [Fundação Nacional dos Povos Indígenas, Incra [Instituto Nacional de Colonização e Reforma Agrária], Ibama Instituto Brasileiro do Meio Ambiente e dos Recursos Naturais Renováveis], Forças Armadas, e aí nós nos propusemos a fazer isso.

Criamos o gabinete de crise para atender Mato Grosso e Mato Grosso do Sul, porque nós não temos recursos para atender todos. Por exemplo, nós conseguimos trazer uma aeronave, não dá para ficar com a aeronave aqui sabendo que lá estava sem. Então, nós tínhamos que atuar nos dois. E essa aeronave nossa, nós temos três para atender o Brasil inteiro. Então, era um operativo muito caro para estar aqui e não ser utilizado ao máximo.

Então, a gente fez essa proposta e chamou os outros órgãos e vieram, nos atenderam, mostraram interesse e hoje nós estamos, principalmente com o Ibama lá na área do Pantanal, aí já entrando na questão, na estratégia que foi montada para esse tipo de atuação.

Como tem sido a atuação na região?

Identificando a região, os problemas que estavam anunciando ali, a gente juntou os nossos peritos, os nossos especialistas e qual foi a mensagem? ‘Olha, em que pese serem centenas ou até milhares os focos de incêndio no Pantanal, não é isso que é o problema, nós temos que ter atenção naquilo que eles chamam de maiores cicatrizes, que é uma área grande queimada’.

Porque com a tecnologia que tem hoje, de imageamento satelital, se você quiser calibrar as imagens para isso, um cara que acende uma churrasqueira lá, você vai ver. Então, vamos pegar uma área grande que tenha tido queima.

Então o satélite passa e vê uma área grande queimada, temos aí um forte indício de crime, você não pode queimar, está proibido, então aconteceu o quê? Um incêndio florestal de grandes proporções. Como que nós vamos descobrir quem é que fez isso e em quais circunstâncias fez isso? Aí a gente começa o imageamento pretérito, vai pegar aquela cicatriz e vai regredindo no tempo, até você chega na origem.

Chegou a conclusão de que aquela grande cicatriz teve origem na coordenada tal. Então nós tínhamos a aeronave disponível, pegamos equipes de peritos, equipes de agentes e jogamos nesse ponto, para que eles identificassem as circunstâncias de início de fogo, de ignição com os peritos, e os agentes começassem a trabalhar, entrevistando as pessoas, ribeirinhos, capatazes, fazendeiros, até a área urbana mesmo, para gente tentar entender por que esse fogo iniciou, a circunstância que ele iniciou e quem deu causa.

O que nós temos são aproximadamente 30 focos identificados, e isso que eu estou falando de hoje para trás, porque o fogo deu uma cessada. Tanto em Mato Grosso quanto em Mato Grosso no Sul fez-se esse mapeamento regresso e chegou em 30 pontos de origem de fogo. Esses 30 é que geraram manchas de grande proporção, e estão espalhados no território pantaneiro, nos 65% nosso e nos 35% do Mato Grosso.

Equipes foram a todos esses pontos para coletar os primeiros dados. A partir dali vai se identificar a propriedade, se é privada, se é pública, quem que é o dono, se tem indício de quem possa ter iniciado esse fogo. Já se tem a confirmação de que esse fogo não é espontâneo, então todos eles são focos de incêndio provocado por ação humana. Aí você vai identificar autor, descobrir quem é que botou esse fogo, aí você vai ver a condição que esse sujeito, a ideia dele foi sem querer, ele estava cozinhando um feijão e pegou fogo, ele responde? Responde, por culpa, ele culposamente botou fogo no Pantanal.

Ele quis botar fogo, é um fazendeiro, é um ribeirinho, é um indígena, vai responder por dolo, ele quis cometer aquilo. Ele não queria isso, ele queria só um pedaço pequeno, aí é o que a gente chama de dolo eventual. Ele queria só um pedaço pequeno, mas qualquer criança sabe que se botar fogo você vai perder o controle, o negócio vai espalhar, ele não queria o incêndio florestal, mas assumiu o risco de ter esse incêndio florestal. 

Esse é o primeiro passo. A gente identifica os focos, vai nesses focos tentar achar a teoria e circunstâncias do fogo. Aí a gente descobre se essa área é privada. Aqui em Mato Grosso do Sul, 95% do território é privado. Então, se o fogo foi naquela área privada e não atingiu nenhuma área de interesse da União, esse caso vai pro Poder Judiciário Estadual, a Justiça do Mato Grosso do Sul ou a Justiça do Mato Grosso que vai cuidar.

Mas aí você imagina, nós já fomos lá, já temos essa informação, já cruzamos dados de satélite, já temos o início de uma investigação, o Ibama já foi conosco, eu vou jogar isso tudo fora só porque não é meu? Aí a gente combinou com o Ministério Público Estadual que, se no final a gente concluir que aquilo foi iniciado e terminou numa área privada, não é interesse da União, nós vamos entregar o pacote para eles e eles vão dar os desdobramentos, para não ter retrabalho e para não perder o material.

Se porventura a área for área federal,  como: terreno de Marinha - por exemplo o rio Paraguai é nacional, então uma área próxima a ele, de um lado e do outro, é terreno de Marinha, esse terreno é da União, você não pode construir lá por exemplo - temos também terreno da Marinha, que aí é do Ministério da Defesa, ou do Exército; áreas devolutas, que é a área que não é de ninguém, então pertence à União; e parques federais, que nós não temos aqui, mas nós temos em Mato Grosso.

Para além disso, tem uma discussão também do bioma pantaneiro como patrimônio da humanidade, não interessa onde que está o fogo. Fauna, em tese, também não interessa se é particular, então, fica a mensagem de que a nossa ação é autorizada por lei em todo o Pantanal.
Só que por questão de competência da justiça a gente vai mandar para uma ou para outra. Então, se a gente identificou que a área é nossa, nós vamos instaurar um inquérito policial e vamos mandar para o Poder Judiciário Federal. Se for área particular lá no Mato Grosso ou aqui, nós já fechamos com o Ministério Público Estadual, que nós vamos mandar para eles e não vai perder esse material.
Meio ambiente é uma matéria constitucional que chama todo Estado, município e União e o Pantanal possui um patrimônio da humanidade tombado e os espécimes animais que tem lá mais ainda.

Dessas investigações, já tem alguma mais adiantada?

Não, mais ou menos está tudo no mesmo pé. Porque a gente tem que entender se fogo começou em área privada e ir para a área pública, ou o contrário. Nós não estamos preocupados hoje com quem que é o proprietário. Nós vamos no foco do incêndio. Aí depois é que vai fazer o cruzamento para saber que propriedade que é, que local que é, a quem pertence. Então isso já vai ir para a frente do trabalho.

O perito nosso hoje é muito mais importante inclusive pela tecnologia que se tem, num gabinete desse do que provavelmente no mato.

No mato, antigamente, o cara afirmar que um fogo era provocado por condição humana, ele tinha que encontrar lá uma lata de querosene, negócio assim, hoje não existe mais isso.
A comunidade sabe hoje que, por exemplo, raio, qualquer raio, ele é imediatamente detectado. Então, nós temos informações que nesse período todo não teve nenhum raio lá. Então, não me vem dizer que foi raio. Então, o fogo é humano.

Todo qualquer cometimento de crime, o cara quer o benefício e não quer a responsabilidade. Então o cara pensa nisso, hoje ele sabendo que tem esses recursos estão na região.

Eu achei muito, muito interessante essa investida. E segundo, consta, historicamente não se fazia isso. Hoje nós temos recursos lá para fazer esse levantamento por parte do Estado e por parte do governo federal. O que me disseram é que antes não se fazia isso. Nós temos lá hoje três peritos da Polícia Civil. O pessoal da Polícia Militar falou conosco.

No primeiro momento, quando eu vi a crise, falei, nós vamos ter que ir pra lá.
Foi anunciado que ninguém poderia nos ajudar. Inclusive, o próprio Ministério Estadual chegou a pedir um helicóptero da PRF. Agora, hoje, lá tá coalhado de helicóptero. Que bom que agora é assim.

Nunca se teve um aparato à disposição como está agora, então qualquer fumacinha pessoal está correndo e apagando, se tivesse feito isso antes não teria chegado no estado que chegou, então pela primeira vez, aí já não sou eu que estou falando, são as pessoas que estavam lá, que eu tive lá, existe um aparato tal, que a tecnologia hoje, começou uma fumacinha, já vão jogar helicóptero, avião e brigadista lá e vai apagar, não vai acontecer mais o que aconteceu, mas se por ventura iniciar uma chama dessa, tão logo seja debelado o fogo, nós vamos lá de novo. Agora parece que retornaram os focos, e pode ir até setembro. Qualquer coisa que acontecer aqui, mesmo mecanismo que nós fizemos no começo, nós vamos fazer de novo. Só que hoje dificilmente essas grandes cicatrizes ocorrerão. Porque o cara detectou um fogo, já tem 50 brigadistas lá. Só se todo mundo sair botando fogo ao mesmo tempo, aí não tem jeito.

Perfil

Carlos Henrique Cotta D´Ângelo 

Natural de Minas Gerais, Carlos Henrique Cotta D´Ângelo é bacharel em Direito pela Universidade Federal de Viçosa (UFV), e em Administração Pública pela Universidade Federal de Ouro Preto (UFOP), além de ser Mestre em Direito pela Universidade Federal de Uberlândia (UFU). Entrou para a PF em 2002 e passou por vários estados antes de chegar a MS.

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