Logo Correio do Estado

Eles matam cavalos, não matam? Os velhos e desumanos concursos de danças lembram a maratona do nosso futebol Confira a coluna de Juca Kfouri deste domingo (18) 18 AGO 2024 • POR Juca Kfouri • 00h05
Jornalista, autor de “Confesso que Perdi”. É formado em ciências sociais pela USP.   Divulgação

O calendário do futebol brasileiro deixou de privilegiar o futebol para realçar a importância da resistência.

Sobreviver à maratona vale mais que jogar bem.

E Tite agora reclama, como reclamava antes de ser funcionário da CBF.

Quando foi, calou.

Nada fez para influir na mudança imprescindível.

Que permaneça calado, porque a credibilidade foi para o espaço.

Ou, ao menos, faça autocrítica, peça desculpas pelo silêncio cúmplice durante os seis anos em que esteve lá no dia a dia com o presidente da CBF em quem até beijo deu, mesmo depois de ter assinado manifesto exigindo a renúncia dele.

Em fins dos anos 1960, um filme americano com Jane Fonda fez sucesso mundo afora: "They shoot horses, don’t they?", (Eles matam cavalos, não matam?) — "A noite dos desesperados", no Brasil. Recebeu uma porção de indicações para os festivais de cinema, para o Oscar, inclusive.

Tratava de um concurso feito no período da Grande Depressão, nos Estados Unidos, em 1930, que consistia em dançar até ficar apenas um casal.

O prêmio era de cinco salários mínimos e era proibido parar de "dançar" por um minuto que fosse, exceção feita ao pouco tempo concedido para dormir ou ida ao banheiro.

Dançar mesmo ninguém dançava, mas os casais se movimentavam, até à exaustão, ou até morrer em alguns casos.

O filme se baseia em livro apoiado em caso real acontecido em Chicago, quando o casal vencedor permaneceu durante mais de 1.600 horas, 70 dias se mexendo como se dançasse.

A TV Record, nas décadas de 1950/60, fazia o chamado Concurso de Resistência Carnavalesca por três dias, no Ibirapuera, tão desumano quanto.

Voltemos ao futebol.

Quem viu o 0 a 0 entre Nacional de Montevidéu e São Paulo não pode dizer que ficou satisfeito, por mais que empatar fora de casa seja do manual de sobrevivência da Libertadores.

Contentar-se com o resultado do time visitante, que não deu nem sequer um mísero chute ao gol, é apoiar o fim do futebol como manifestação artística, é desonrar o reinado do Rei Pelé, é pisotear o túmulo de Telê Santana, é cuspir na razoavelmente recente história escrita por Raí no Morumbi.

Definitivamente, futebol não é isso.

O empobrecimento é de tal ordem, a resignação à mediocridade é tamanha, que nem mesmo se ouviu referências ao péssimo estado do gramado no Gran Parque Central, o estádio do Nacional, justificativa eventual para a estonteante quantidade de passes errados na saída de bola tricolor, a ponto de botar em risco o maldito empate sem gols, sem emoções, sem vergonha na cara.

No que Tite tem razão em sua indignação — aliás, tem razão em tudo, só perdeu autoridade para protestar — diz respeito à covardia, à resignação dos jogadores, submetidos às lesões recorrentes sem dar um pio, sem um movimento para dar fim ao suplício a que são submetidos, semanalmente, há anos e anos.

Recorra-se aos números do PVC: o Palmeiras poderia chegar aos 80 jogos neste ano; o Real Madrid chegaria aos 59 caso tivesse disputado a final da Copa do Rey na temporada passada.

É o caso de voltar ao já escrito um milhão de vezes: fosse feito com cachorros e a Associação de Proteção aos Animais tomaria providências.

Os sindicatos dos atletas são cúmplices da barbárie, seus dirigentes são sócios da exploração, o presidente da CBF é vampiro da saúde alheia e os dos clubes também.