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O melhor da vida está nas coisas simples

Por Carlos Lopes dos Santos, advogado

27 AGO 2024 • POR Carlos Lopes dos Santos, advogado • 07h45

Um dia, há um bom tempo, ganhei de uma velha e querida senhora, minha vizinha de muro, um simples copo de plástico, não tão novo, mas em bom estado de uso e cheio de risquinhos que indicavam as medidas de líquidos, farinhas, gramas e outras.

Isso aconteceu depois que eu comentei, em uma conversa via muros, que não sabia medir exatamente as quantidades de leite, manteiga e farinha quando me arremetia na feitura de um bolo e sempre tinha um probleminha na elaboração. A simpática vizinha me disse que sabia de cor as medidas quando fazia seus quitutes e que tinha aquele vasilhame sem uso na sua cozinha e que me doaria.

Fiquei meio sem jeito com a oferta, mas resolvi aceitar, para não causar uma má impressão a uma pessoa tão boa e uma vizinha tão prestativa. Levei o “presente” para casa e já não sei quantas vezes o utilizei nesses longos anos desde o dia em que o ganhei. Sei que já faz mais de 40 anos que ele faz parte de meus apetrechos domésticos, e, em que pese as modernidades, alguns aparelhos chiques que tenho em minha cozinha, lá está ele, o velho vasilhame (agora já posso chamá-lo de velho) pendurado em um “honroso” lugar.

O tempo, como faz com tudo e com todos, o depreciou, evidentemente, mas ainda é extremamente útil, e, confesso, tenho uma estranha e grande afeição e cuidado por aquele objeto e um “quase ciúme” com quem o usa. Por que isso? Seria exagero? Bobeira? Alguns familiares classificam de besteira, mas só eu sei exatamente o significado do meu carinho pelo antigo objeto.

Eles não compreendem que não é simplesmente o vasilhame que eu tanto amo. O meu coração nunca se esqueceu da atitude daquela velha senhora para comigo. Apesar de ela saber que eu tinha condição de comprar qualquer utensílio caro e moderno, graças a Deus, ela não se importou em me ofertar um objeto usado, mas que me seria muito útil. Com seu gesto, ela não me deu só o vasilhame de plástico. Ela me deu seu carinho e atenção quando lhe apresentei o meu “grande problema”, e o fez com um coração puro e generoso de verdade, desapego e rico em simplicidade e ternura. 

O tempo passou e segui o meu caminho. Mudei-me de cidade e nunca mais vi e nem ouvi falar da dona Maria, minha inesquecível e humilde vizinha do vasilhame de plástico, até que, na semana que passou, um amigo que ainda reside no mesmo lugar de outrora, indagado, respondeu-me que ela já havia falecido há mais de um ano. Uma sincera tristeza se apossou de mim e imediatamente meu pensamento se converteu silenciosamente em uma oração por sua bondosa alma.

Apesar de nunca mais tê-la visto, ela jamais saiu de minha memória, não pelo fato de ter me cedido um velho copo de plástico, mas, sim, por ter me ensinado uma valiosa lição de vida, a qual nunca mais me esqueci e que possibilitou, entre outras coisas, me tornar uma pessoa melhor como ser humano: a lição do desprendimento. Graças a essa simples passagem em minha vida, pude perceber que nem sempre o que conta em nossa existência são as coisas caras e deslumbrantes, pois muitas vezes isso não nos traz o verdadeiro valor que fará diferença e o ensinamento que precisamos para enriquecer nossa jornada neste planeta. 

Um presente caro e sofisticado causa alegria e satisfação, evidentemente, entretanto, nem sempre ele vem rodeado da virtude maior que é o valor do desprendimento, da entrega sem medidas, sem apego, sem esperar retorno. Quando recebemos algo assim, geralmente, quem nos dá espera o reconhecimento pleno e o aval do eterno agradecimento, haja vista a numerosa quantia paga pelo valoroso presente. Pode ser justo isso? Talvez. Mas quase nunca nessa vida alguém presenteia alguém com algo muito valioso sem que haja algum interesse, material ou sentimental. Quase nunca.

Por questão de justiça, acho oportuno registrar que para tudo nessa vida existem exceções, e essa afirmação também está sujeita a essa regra, mas, geralmente (desculpem a redundância), a vida é assim mesmo. Presente caro dado a alguém sempre vem sem o desprendimento total. Não, não é pecado isso. Somos humanos, repletos de perfeições e imperfeições e trazemos dentro de nosso DNA a herança do caráter e da personalidade de nossos antepassados, mas eles já estão na eternidade, e nós permanecemos por aqui. Temos ainda a oportunidade de melhorarmos nossas atitudes, nossos comportamentos, nossas ações, e o que é mais valioso, também vamos contribuir para melhorar nossas futuras gerações, pois o bem só gera o bem.

Talvez alguém possa achar exagero que a simples doação de um simples vasilhame usado de plástico possa realmente ter transformado minha vida. Claro que não foi apenas isso que me ajudou a compreender o verdadeiro significado de ser feliz e praticar o bem, mas posso garantir, sem sombras de dúvidas, que contribuiu grandemente, entre outras coisas, para a formação de meu caráter e aprendizado em valorizar o que realmente importa para tentar ser mais feliz nesse mundo repleto de incoerências.

Em uma vida simples, sem grandes ambições, fica mais fácil ser feliz.

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