Logo Correio do Estado

Artigos

A pablomarçalização

Por Gaudêncio Torquato, escritor, jornalista, professor titular da USP e consultor político

10 SET 2024 • POR Gaudêncio Torquato, escritor, jornalista, professor titular da USP e consultor político • 07h30

No processo eleitoral em curso, o fenômeno que chama atenção é a posição nas pesquisas do empresário, coach e influenciador Pablo Marçal. Está na ponta das pesquisas em São Paulo, podendo vir a ser o próximo alcaide na prefeitura da maior metrópole do País e, como ele já adiantou em entrevistas, ambiciona sentar-se na cadeira presidencial no pleito de 2026.

A avalanche eleitoral de Pablo Marçal se explica sob um leque de fatores que desenham o mapa das circunstâncias, a moldura das carências e das demandas da sociedade. Entre esses elementos, podemos alinhar os seguintes: saturação da velha ordem política; perfil de contraponto ao status quo; incorporação do cotidiano das classes sociais, a partir de acurada leitura dos algoritmos que povoam o universo social; e jovialidade, em contraposição ao padrão comportamental de protagonistas tradicionais. Analisemos alguns desses aspectos.

Saturação da velha ordem: há décadas que o País convive com uma ordem eleitoral hoje defasada. De dois em dois anos, candidatos disputam eleições, em pleitos para prefeitos e vereadores de municípios e para governos de estados, Câmara, Senado e Presidência da República. Nesse momento, a comunidade é submetida a uma avalanche de promessas e de realizações, enaltecimento de perfis, enfim, uma bateria de loas e hosanas que já não produzem impacto no sistema cognitivo dos eleitores.

A verborragia escorre pelo ralo da descrença. Ao aparecer uma alternativa à velha ordem, a comunidade se inclina em sua direção.

Um perfil de contraponto: nessa engrenagem, um perfil que surja em contraposição aos velhos atores acaba ganhando intensa visibilidade junto ao eleitorado. O personagem em questão, com sua aura de herói, surge como um São Jorge atravessando com sua espada a garganta do dragão da maldade. Ei-lo vestindo o traje do comandante tão esperado por um eleitor saturado de migalhas da velha política.

O algoritmo das demandas sociais: esse “santo guerreiro” tem o dom de ler e entender os gostos das classes sociais, incorporando sua linguagem, absorvendo sua fala e devolvendo ao eleitor um discurso condizente com suas expectativas.
Jovialidade: por último, o eleitor passa a enxergar no novo figurante da cena política disposição para a luta, coragem de verbalizar os malfeitos, persistência em correr na arena eleitoral sem compromisso com partidos e lideranças tradicionais.

Pois bem, Pablo Marçal veste o figurino em todos esses retratos. É o símbolo de uma onda de renovação que se espraia pela seara da política. Claro, ele sabe que cavalga na montaria populista, com seu discurso de “virar a mesa” tão apreciado por contingentes saturados. É um espertalhão? Sim. É um oportunista? Sim. Ele veste o manto do enganador, do mágico que tira coelhos da cartola, sabendo que o público gosta de participar de encenações e até de votar em “cacarecos”, uma forma de punir a velha ordem.

Marçal é o “palhaço” do circo Brasil nessa caminhada eleitoral em que poderá surpreender com um alto desempenho nas urnas. É a cara de um país carente de líderes e atormentado pela desesperança. Nesse sentido, a surpreendente performance ultrapassa as fronteiras de sua identidade.

É algo maior que ele. Um fenômeno que ilustra as cores da paisagem devastada pela desilusão. Um produto das circunstâncias.

Um figurante que se mostra disposto a cortar o elo que prende o País ao passado. E um abridor das porteiras à direita do arco ideológico, mesmo que esse traço em seu perfil não seja tão relevante. Em suma, é um ponto fora da curva. O ícone da desrazão. Ou como explicar o nexo na construção de um edifício de um quilômetro de altura?