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ARTIGO

(Não) É assim que acaba

Se, como sentenciou Shakespeare, entre a ficção e a realidade há mais mistérios do que a nossa vã filosofia possa ensinar, tratando-se da ficção artística, seja literária, seja cinematográfica, essa assertiva é mais constatável

14 SET 2024 • POR Paulino Fernandes de Lima • 08h00
(Não) É assim que acaba   Arquivo

Se, como sentenciou Shakespeare, entre a ficção e a realidade há mais mistérios do que a nossa vã filosofia possa ensinar, tratando-se da ficção artística, seja literária, seja cinematográfica, essa assertiva é mais constatável.

O badalado livro de Coollen Hoover, cujo título original é “It Ends With Us”, e que se tornou mais badalado recentemente, quando adaptado para as telas de cinema, é um típico exemplo de que o mundo da ficção nem sempre concorda (em gênero, número e grau) com esse mundinho em que vivemos.

Sem querer dar spoiler (e já querendo), parafraseando aqui o saudoso Jô Soares, o fim do filme não acaba da mesma forma que (no real) se encerram as turbulentas relações entre casais quando são permeadas pela indesejável violência doméstica, que hoje virou uma praga quase indizimável entre nós.

Nos últimos anos, o aumento do número de casos de violência doméstica praticados no País vem se tornando tão corriqueiro que, além de negligenciado, passou para o patamar da banalização.

Neste ano, por exemplo, só até junho, já haviam sido contabilizados 1.693 casos de feminicídio, e 793 tiveram o indesejado resultado letal, segundo levantamento realizado pelo Laboratório de Estudos de Feminicídios (Lesfem), que monitora esses casos no País.

Ao lado dessas fatalidades, ainda convivemos com a angustiante constatação de impunidade, seja em decorrência da ausência de maior austeridade na apuração dos crimes que chegam às autoridades, seja em razão das próprias subversões à ordem que os autores do delito conseguem empreender.

Esses dados não deveriam ser visitados somente quando nos aproximamos de datas que celebrem algum dia especial, como, por exemplo, o Dia Internacional da Mulher, já que isso acaba revelando a pura ineficácia em matéria de combate ao grave problema que insiste em permear nosso meio.

Voltando ao comparativo entre o que assistimos ao fim da ficção e o que diuturnamente temos em nosso cotidiano, um ponto chama bem a atenção. Em nossa dura e crua realidade, quando a mulher decide seguir seu caminho sozinha, sem mais a companhia da opressão que lhe subtrai a paz e o verdadeiro sentido de amar na vida, ela acaba mesmo é sendo perseguida até a eclosão de uma fatalidade pelo simples fato de o agressor “não aceitar o fim do relacionamento”.

Se realmente a vítima, mesmo que não denunciasse às autoridades ou a a pessoas próximas o que estivesse sofrendo, pudesse ao menos escolher ir embora e que o agressor a deixasse em paz, já seria uma conquista.

Entretanto, o que presentemente ocorre é que, quando ela decide pôr um fim ao “inferno de relacionamento” em que vive, acaba sendo inserida em outra penosa situação de subjugação praticamente interminável. E o que é pior, não conta com a segurança que deveria ser prestada pela sociedade e pelo Estado.

Não é raro que ela seja até desacreditada, não só por esses entes, mas até pela família, que lhe aponta o dedo, culpando-a por um relacionamento contraído que não deu certo.

Isso certamente só lhe afligirá e aumentará sua sensação de impotência, já tão medonhamente atingida a essa altura.

É preciso que esse debate ocupe as primeiras fileiras e pautas nas entidades e órgãos competentes, sob pena de que a dignidade e a liberdade das vítimas não venham a ser, no porvir, mais que uma mera ficção, um sonho impossível.