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CRÍTICA

A primavera de Eric Rohmer

Entre encontros e desencontros, filosofia e protagonismo feminino marcam o primeiro dos quatro filmes da série Contos das Estações realizada pelo diretor francês

26 SET 2024 • POR Marcos Pierry • 15h15
A professora de filosofia Jeanne (Anne Teyssèdre, à esquerda) e a estudante de música Nastascha (Florence Darel)   Foto: Divulgação

Desde domingo, ela, a primavera preenche a imaginação e os anseios de quem considera a estação das flores um momento de beleza singular na paisagem e, do ponto de vista simbólico, uma motivação e tanto para a brotação de ideias, afetos e projetos. Mesmo com a intensa floração dos ipês colorindo Campo Grande já nos meses de inverno, a força do calendário oficial estimula todo um universo subjetivo em muita gente - e, quase sempre, na mídia também.

Não parece ser diferente com os artistas, embora, neles, a criação ganhe outros percursos, onde a motivação aparente muitas vezes sirva somente de pretexto para outros sentimentos e abordagens que acabam se distanciando do suposto mote inspirador. Se, nos concertos de Vivaldi, allegros e adagios acompanhem com uma maior fidelidade, seguindo, inclusive poemas previamente escritos, o que se pode entender como uma espécie de mood de cada fase da natureza, a coisa muda de figura nos filmes do francês Éric Rohmer (1920-2010).

Ícone da nouvelle vague, o diretor já contava seus 70 anos quando levou a público o primeiro dos quatro longas de seus Contos das Estações, o “Conto da Primavera” (“Conte de Printemps”, 1990). Na trama, que segue leve, fluente e afiada desde o princípio, três mulheres meio que emparedam o personagem masculino, Igor, vivido pelo ator Hugues Quester. Natascha (Florence Darel), uma jovem estudante de música, é a sua filha. Ève (Eloïse Bennett), sua namorada, bem mais nova que ele. E Jeanne (Anne Teyssèdre), uma professora de filosofia, a terceira mulher.

Sentindo-se sem espaço em seu próprio apartamento, por causa da presença de um familiar, Jeanne também rejeita o apê do noivo; afinal, o cara nem está por lá (nem em lugar algum) e a bagunça toma conta de tudo. É quando ela encontra Natascha numa festa e a menina a convida para pousar no quarto do pai, já que ele passa mais tempo longe com a namoradinha do que em seu próprio lar. Em algum momento, os quatro vão parar na casa de campo de Igor. E a filha desse, já cúmplice da nova amiga, projeta o romance da professora com o pai.

Dito assim, parece apenas mais um enredo de novela, ou de filme de Woody Allen (aliás, em cartaz na cidade com o seu “Golpe de Sorte em Paris”). Rohmer, porém, se afasta de qualquer possível comparação pela força que imprime nas situações que costumam encenar. No ímpeto de querer ver o pai atracar-se com Jeanne, o que até acontece, Natascha arma situações e lança desconfiança sobre Ève ante o desaparecimento de um colar. A professora embarca no imbróglio, Igor fica hesitante, a namorada aceita a disputa, a filha vibra.

Mas, nessa história, como Rohmer a conta, cada desdobramento vai esgotando a dimensão de folhetim e encorpando seu caráter mais reflexivo. A filosofia, latente o tempo inteiro, ganha lugar de destaque em vários momentos. Num deles, com os quatro à mesa, a namorada e a paquera entram em divergência.

Mantêm a elegância e a informalidade enquanto comem e conversam sobre a compreensão da filosofia segundo a visão individual de cada um. Ève, que está enredada em uma monografia sobre o tema, apresenta certezas inabaláveis.

Jeanne defende que, mais que os conceitos de Platão ou Spinoza, precisa estimular nos alunos (de classe proletária) a autonomia do próprio pensamento e o amor próprio. Uma ataca com “metafísica”; a outra devolve com “filosofia transcendental”. Tudo isso regado a Kant, Husserl. No fundo, dão a impressão de estar falando de si mesmas e da responsabilidade de cada um ali pelos próprios atos. Pai e filha vão se entreolhando e o espectador, também olhando para dentro de si, conversa com os seus próprios borbotões, reflete, exulta.

É nesse movimento, de deslizar o conteúdo da trama, para a sensibilidade e o pensamento de quem acompanha a narrativa que Éric Rohmer demonstra sua argúcia de pensador da natureza humana - até que ponto somos, de fato, responsáveis por nossos próprios gestos? - e sua alta capacidade de colocar os elementos da representação a favor desta operação, tão agradável quanto arriscada, de nos levar à observação interna, repassando atos e desejos com rigor, mas sem julgamentos. Será tudo isso possível numa primavera? Para Rohmer, sim.