Menos popular que seu conterrâneo e colega de ofício na arte das imagens Akira Kurosawa (1910-1998), o cineasta Yasujiro Ozu (1903-1963) é igualmente reconhecido pela crítica como um dos mais distintos do japão e do que se convencionou chamar, entre especialistas de todo o mundo, de cinema de autor; grosso modo, uma forma de fazer filmes em que quem assina a direção deixa a sua marca pessoal (autoral) na obra de maneira bem mais destacada do que as convenções de determinado gênero ou da própria força temática do enredo.
Ou seja, é quando o estilo pessoal fala mais alto a ponto de determinado filme, ou conjunto de filmes, além de despertar grande interesse, chegar a provocar dilatações, alterações ou menos discussões sobre a própria linguagem cinematográfica.
É nesse sentido que Ozu pode ser considerado um autor, por ter produzido um conjunto de obras de tamanho quilate, formando com Kurosawa e Kenji Mizoguchi (1898-1956) a santíssima trindade do cinema japonês, apesar de, com o tempo, tornar-se, cada vez mais, um cineasta de cineastas ou cinéfilos, com uma adoração mais restrita.
Em “Ervas Flutuantes” (1959), Ozu põe seu estilo peculiar a serviço da recriação de outro longa-metragem de sua própria autoria, de enredo idêntico, mudo e em preto e branco, lançado em 1934, “Uma História de Ervas Flutuantes”.
Desta vez com som e em cores, a história que se passa em uma pequena cidade do litoral sul do Japão ganha, talvez por isso mesmo, reforço em seus contornos melodramáticos, especialmente quando se encaminha para o final.
A trama apresenta a chegada de uma companhia teatral ao lugarejo, em que Komajuro (Ganjirô Nakamura), chefe da trupe, parece mais interessado em beber saquê num bar e prosear com a sua dona do que o sucesso de público da temporada por ali.
A dona é Oyoshi (Haruko Sugimura), outrora amante de Komajuro e com quem o ator veterano teve um filho, Kiyoshi (Hiroshi Kawaguchi), que, por sua vez, pensa ser sobrinho do seu verdadeiro pai.
O rapaz trabalha numa agência de correio e a maneira pela qual acaba descobrindo a identidade real de Komajuro se dá no momento do ápice da curva (melo)dramática do filme, com brigas, acusações, entra-e-sais e toda a sorte de ressentimentos. Os laços familiares, a crise de gerações, a falência do patriarcado estão entre os temas que perpassam a trama.
No desejo de Kiyoshi de fazer faculdade, abre-se uma das frestas do longa que acenam também para o que talvez seja, na sinalização do diretor, o ocaso de um determinado way-of-life da sociedade japonesa.
As mudanças incluem o desprestígio de formas de arte tradicionais, a ruína do macho padrão na figura de Komajuro e nas mudanças a que se submete o personagem para se redimir, se purificar e se transformar frente ao turbilhão doméstico que revolve o passado remoto e imediato.
Restabelecida a verdade, restabelece-se o presente em melhores condições e projeta-se um futuro mais promissor e, quem sabe, mais feliz para todos.
Mas a novidade, por mais que alvissareira, talvez não seja capaz de derrubar certa beleza do que ficou para trás: a própria plástica dos espetáculos de teatro, a pesca entre pai e filho e a frugalidade de uma infância ingênua e contente, que aparece com graça no filme durante as passagens em que a meninada corre pra-lá e pra-cá nas ruelas de terra.
Nesses momentos, mas não somente aqui, sobressai a delicadeza do olhar de Yasujiro Ozu para as coisas da vida. Trata-se, afinal, de uma história de amor, que germina outra, ou outras.
O diretor mostra que intensidade não exclui a possibilidade de delicadeza, premissa em que sua maestria sempre comove - em meio, aliás, a uma escola de diretores, como os outros já citados, em que a sutileza é ferramenta de pleno domínio, embora com usos e objetivos diversos.
A câmera rebaixada, seguindo o hábito de se sentar no chão, comum no país, a riqueza e detalhismo dos trajes, o plano fixo e duradouro, o corte seco, que garante uma decupagem extremamente afiada e a serviço da história, os silêncios.
Sem contar as cores (fotografia de Kazuo Miyagawa) e a nostálgica e, uma vez mais, delicada trilha musical (Takanobu Saito) que embalam aqueles destinos ao longo de duas horas. Tudo parece ser beleza e contemplação em “Ervas Flutuantes”. O filme de Ozu, porém, como se disse, é bem mais que isso, deixando seu recado sobre o caráter fugidio das coisas da vida.
Além de “Ervas Flutuantes”, o esquenta para o Encontro da Socine terá mais um filme em cartaz no MIS: “Crisântemos Tardios” (1939), de Kenji Mizoguchi, na quinta-feira, 19h. Os dois longas serão abordados por Lúcia Nagib, uma das convidadas do Encontro da Socine, durante a palestra “Geidomono: Teatro e Cinema em Ozu e Mizoguchi”, no dia 23/10, 18h15, no Auditório Multiuso da UFMS.