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ARTE PRA QUEM? Lei reconhece grafite como manifestação cultural, mas não resolve marginalização Artista grafiteira que já teve murais vandalizados até por presidente de bairro, fala sobre como expressões do underground, como o grafite e pichação, sofrem com preconceitos que tentam dividir o movimento 16 OUT 2024 • POR Leo Ribeiro • 12h49
Artista teve um mural de quase 30 metros vandalizado no começo do ano   Marcelo Victor/Correio do Estado

Com lei publicada no Diário Oficial da União (DOU) desta quarta-feira (16), o Governo Federal reconhece o grafite - entre outras artes - como manifestação cultural brasileira, porém, para quem sente na pele a realidade de integrar o movimento, não é um punhado escrito em papel que vai mudar uma das bases dos problemas que essa e outras expressões enfrentam: a marginalização. 

Segundo o texto legal do DOU, ficam reconhecidos como manifestações da cultura brasileira as seguintes expressões artísticas: 

Pelo texto da lei, fica classificado como "grafite" qualquer expressão de arte urbana: 

"Em forma de desenho e escrituras em que o artista cria uma linguagem intencional para interferir na cidade, com o aproveitamento de espaços públicos, como paredes, muros, fachadas, viadutos e ruas".

Com o reconhecimento, cabe agora ao poder público não só garantia dessa livre expressão artística, mas, além disso, promover a valorização e preservação. 

Ou seja, ficaria a cargo do Estado e do Município, por exemplo, não só garantir que todo e qualquer trampo seja executado, como também se posicionar contra e até punir justamente quem vandaliza essas expressões, porém, "não adianta uma lei sem educação da população". 

É o que pensa a multiartista (grafiteira; pintora; muralista e colorista) Thais Maia, que em 30 de janeiro teve um mural de cerca de 30 metros vandalizado na Orla Morena de Campo Grande. 

"Enquanto a população não parar de ver o grafite como algo marginal, vai ser muito difícil que realmente isso se aplique... é um passo, é importante, que legal que foi reconhecido, porém, a prática é totalmente diferente da teoria", cita Thais. 

Marginalização e preconceito sistemáticos

Procurada pelo Correio do Estado, Thais Maia comentou sua visão enquanto grafiteira - que já teve artes vandalizadas por presidentes de bairro e até pessoas do próprio movimento - sobre a nova lei de reconhecimento. 

Para ela, "o buraco é mais embaixo" já que, na prática, a lei favorece que os espaços culturais e públicos cedidos para um novo grafite, continue contemplando um mesmo nicho de grafiteiros que possuem manifestações mais padrões. 

Maia cita que, em caminhada por Mato Grosso do Sul, é possível observar que a maioria das obras preservadas por anos; bem como boa parte dos espaços cedidos para serem preenchidos com esse tipo de arte, são voltadas para esse mesmo grupo que não é tão "underground" quanto o grafite pode ser.  

"Os que eles têm de fato intenção de preservar, posso dizer que são mais de 90% de artistas homens que se encaixam nos padrões esperados. Se há um artista que se posiciona diferente, eles não têm a intenção de preservar nada... Realismo é bem aceito, uma pintura de arara; de tucano, mas se for fora disso, é questão de tempo para eles irem lá apagar", expõe.

Além disso, na visão da artista, esse apagamento (até literal) do grafite é inclusive sistemático e, caso a expressão não se enquadre em determinados padrões estéticos, há um grande risco de todo o investimento e trabalho de um grafiteiro ser perdido. 

"Tanto por pessoas que simplesmente não gostam e acreditam que a arte é só aquilo que elas gostam - se nosso estilo não agrada elas, já tem que apagar, passar por cima -, quanto até mesmo pelo Estado que faz isso também... Se a estética não agradar eles, se não for uma arte agradável a um ou outro que está no poder, eles mandam apagar, sim", cita ainda.

Marginalizados e unidos

Maia explica que o grafite engloba diversos estilos; temas; estudos e, por isso, é preciso conscientizar toda a população para que esse tipo de intervenção seja cada vez menos discriminada. 

"De que a arte não é só o que você gosta, não é só o estilo que você gosta, a arte é feita para questionar, para pensar, entendeu? E não necessariamente vai ser algo agradável de se ver, não vai ser só um tucano, uma arara, um realismo". 

E, conforme análise, essa conscientização precisa passar pelos mais variados setores, desde a mídia, a população e até os próprios artistas em si, de se posicionarem em defesa de seus estilos, bem como o de colegas grafiteiros. 

Aqui é importante esclarecer que, apesar de terem nomenclaturas e classificações diferentes, o grafite; a pichação e o "grapixo" (essas duas últimas expressões não incluídas na lei de reconhecimento), integram o mesmo movimento e estão em guerra apenas no imaginário comum. 

 
 
 
 
 
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"Estão totalmente interligados. Não existe guerra entre grafite e picho, nem nada, mas a população vive querendo criar isso, porque não fazem ideia de como funciona o movimento e querem criar essa rixa. A população e o estado principalmente", frisa. 

Ela explica ainda que o "grapixo" pode ser identificado como um grafite com letra de picho - ou um picho com letra mais de grafite -, o que segundo a artista é encarado como "agressivo" pela sociedade. 

"E muito antes de chegar no grapixo, dependendo do grafite a pessoa já acha mais agressivo e é motivo para ir lá e apagarem. Colocam como se fosse uma coisa violenta... tipo, uma tinta na parede", complementa a artista.

Sentindo na pele as dificuldades como grafiteira, Thais acha que, apesar da lei, é muito difícil que a valorização aconteça, por se tratar de um processo de anos e anos de educação da população. 

Por fim, cita o assédio por parte de políticos que, segundo ela, se apropriam do movimento [pedindo até trabalhos de graça para Thais] em período eleitoral. 

Maia aponta o problema como sistemático justamente por essas figuras serem contra as manifestações underground quando acabam as eleições, dizendo que o Estado se esconde atrás de algumas cabeças

"O presidente de bairro que foi lá e apagou a minha arte, aqueles 30 metros de murais lá, que tá até agora lá na orla do mesmo jeito, ninguém fez nada, ele se esconde atrás de um vereador, que se esconde atrás de uma prefeita, que se esconde atrás de um deputado... o Estado só quer pagar carona e tentar se promover", conclui.  


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