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Negligência, tortura e precariedade MPE apura ações da Prefeitura após morte e "caos" em comunidade terapêutica O órgão quer entender quais foram as medidas tomadas depois da morte de um paciente por negligência médica e relatos de tortura virem à tona, e para onde foram remanejados os 95 homens resgatados na unidade 31 OUT 2024 • POR Alanis Netto e Laura Brasil • 10h15

O Ministério Público Estadual (MPE) instaurou Inquérito Civil para apurar as ações adotadas pela Prefeitura de Campo Grande com relação à Comunidade Terapêutica Filhos de Maria, que foi alvo de denúncias graves de tortura e demais irregularidades, e seus acolhidos, que precisariam ser retirados do local.

Em julho deste ano, a Defensoria Pública do Estado solicitou que o MPE apurasse a regularidade do funcionamento da comunidade terapêutica, apontando que "a entidade tem realizado de modo desautorizado internações involuntárias e compulsórias".

O pedido veio logo após uma denúncia feita pela irmã de Gabriel Nogueira de Souza, que morreu enquanto estava sob os cuidados da entidade, no dia 20 de maio deste ano. (entenda mais sobre o caso abaixo)

No dia 25 de outubro, ou seja, mais de 5 meses após a morte de Gabriel, a Defensoria Pública de Mato Grosso do Sul resgatou 95 homens que estavam na Comunidade Terapêutica Filhos de Maria, após constatar que eles eram submetidos a condições que foram descritas como "degradantes".

A visita ao local constatou que os homens eram vítimas de tortura, mantidos em cárcere privado e recebiam alimentação precária. Um dos pacientes estava com o braço cheio de marcas de queimadura de cigarro, e a maioria deles estava "dopada", sob efeito de superdosagem de medicamento, e sem receber atendimento médico adequado.

Foi confirmado também que o local funcionava de maneira irregular. A polícia esteve no local para dar início às investigações.

Agora, o Ministério Público Estadual, que em 1º de agosto havia publicado uma Notícia de Fato, com prazo de 90 dias, para que o Poder Público tomasse providências, quer saber quais foram as ações realizadas pela Prefeitura neste prazo, quais as medidas adotadas para o remanejamento dos pacientes que foram resgatados e qual a situação das licenças até então concedidas à entidade.

Caso Gabriel

No relato feito à Defensoria Pública, a irmã de Gabriel conta que ele tinha diagnóstico de esquizofrenia, e que em decorrência do uso de drogas, começou a apresentar piora no quadro de saúde mental. Por isso, buscou na internet locais que oferecessem tratamento de saúde a pessoas com quadros como o de Gabriel.

Através de um anúncio, encontrou a Comunidade Terapêutica "Os Filhos de Maria" que ofertava, além do tratamento medico e multidisciplinar, a possibilidade de internação sem o consentimento do paciente.

Ela foi instruída a internar o irmão em caráter de urgência, e orientada a assinar o contrato e pagar taxas de matrícula e remoção do paciente. Gabriel foi, então, levado de forma involuntária e forçada no dia 12 de abril, por uma equipe da comunidade terapêutica.

A irmã reforça que Gabriel "não foi submetido a nenhuma avaliação médica prévia que indicasse a necessidade de sua internação forcada, nem sequer houve qualquer comprovação de sua condição clinica ou de diagnóstico médico, e nem mesmo indicação médica para internação hospitalar".

Segundo ela, durante os dias de internação, Gabriel não podia manter contato com a família, com exceção para os dias e horários específicos estipulados pela "clínica". O contato era sempre monitorado, e feito apenas por telefone. Ela lembra também que, após um mês de internação, tentou o contato mas foi informada de que Gabriel estaria gripado e com dores no peito.

Pouco mais de uma semana depois dessa tentativa de contato, ela foi informada por uma enfermeira que Gabriel teria "entrado em surto psicótico" durante a noite, e por isso a dose do medicamento havia sido aumentada para que ele se acalmasse.

Após isso, teriam verificado que o paciente estaria sonolento, com saturação e batimentos cardíacos oscilando, e o teriam levado para a Unidade de Pronto Atendimento Nova Bahia. Na UPA, Gabriel morreu.

Segundo laudo, a morte foi causada por "septicemia secundária a foco pulmonar e cardíaca, empiema pleural e pericardite purulenta.

A septicemia - conhecida por sepse - é uma doença grave, que ocorre quando substâncias químicas liberadas na corrente sanguínea para combater uma infeção desencadeiam inflamação em todo o corpo.

O empiema pleural é o acúmulo de pus na cavidade pleural, localizada entre os pulmões e a parede torácica.

Já a pericardite purulenta é uma doença rara e fatal, causada por infecção no espaço pericárdico, a cavidade que se encontra entre as duas camadas da membrana que envolve o coração.

Ou seja, os sintomas de Gabriel foram negligenciados por pelo menos uma semana, e considerados um "surto psicótico" pelos profissionais da comunidade terapêutica.

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