Em entrevista ao Correio do Estado, Ana Carolina Ali Garcia, Procuradora-Geral do Estado de Mato Grosso do Sul, analisa três temas de grande impacto para o Estado e o Brasil: a Reforma Tributária, o Refis e o recente acordo sobre a Terra Indígena em Antônio João. A Emenda Constitucional 32 de 2023, que promove uma ampla reestruturação no sistema tributário, trouxe avanços significativos, mas também desafios para os estados, especialmente na gestão do novo Imposto sobre Bens e Serviços (IBS).
Ana Carolina detalha os impactos dessas mudanças para as Procuradorias Estaduais e discute como o Comitê Gestor do IBS poderá influenciar a autonomia dos entes federados, ressaltando a importância de manter a segurança jurídica em meio às transformações.
A Procuradora-Geral destaca o sucesso do Refis, programa que vem contribuindo para a regularização de créditos tributários e o fortalecimento do orçamento estadual, com arrecadações expressivas já registradas. Além disso, ela compartilha os bastidores do acordo histórico sobre a Terra Indígena em Antônio João, que pacificou um conflito de longa data envolvendo indígenas, proprietários rurais e o governo.
Quais os desafios que a Reforma Tributária impõe aos Estados na cobrança de impostos, e na cobrança das dívidas que têm origem neles?
O grande desafio desse novo modelo de federalismo desenhado pela Emenda Constitucional 132 de 2023, que altera a competência dos entes tributantes e as regras de participação nas receitas tributárias está na associação da premissa da “simplicidade” – agora princípio constitucional tributário – com a preservação da competência administrativa dos entes “subnacionais” para lançar, fiscalizar e cobrar administrativa e judicialmente, por meio de suas administrações tributárias e procuradorias. Trata-se de escolha do texto constitucional reformador, em garantia a outro princípio constitucional: o princípio federativo.
A unificação da legislação e a centralização do órgão gestor têm efeitos sobre a competência dos entes federados, o sistema de distribuição de Justiça e o contencioso administrativo tributário.
Sem dúvidas precisamos, ainda, debater os reflexos processuais oriundos da Reforma Tributária. A simplificação do Sistema Tributário Nacional envolve as competências jurisdicionais. E a ausência de coerência e estabilidade das decisões judiciais gerará insegurança jurídica e, com ela, a probabilidade de contínuas e crescentes demandas.
A compreensão dos novos princípios constitucionais trazidos pela EC 132 e como eles devem guiar o processo legislativo é ponto crucial na regulamentação da EC 132 que segue sendo construída no legislativo e que temos acompanhado.
Como tem sido feita a discussão do Comitê Gestor do Imposto sobre Bens e Serviços (IBS), e como isso pode afetar a autonomia das Procuradorias dos Estados? Aliás, se isso afeta a autonomia das Procuradorias, também afeta o princípio constitucional da autonomia dos Estados?
A Reforma Tributária inaugura uma nova era para o federalismo brasileiro: há um órgão comum para a gestão fiscal, abrangendo todos os Estados e os Municípios. E essa entidade tem competência legislativa (editar regulamento único); financeira (arrecadar o Imposto Sobre Bens e Serviços, compensar e distribuir aos Estados, Municípios e Distrito Federal); e judicante (uniformizar a interpretação e a aplicação da legislação do IBS e decidir o contencioso administrativo).
Segundo o Diagnóstico do Contencioso Judicial Brasileiro uma das principais causas da alta litigiosidade em matéria tributária reside na ausência de uniformização da interpretação da legislação tributária pela administração.
Para adequada funcionalidade do novo Sistema Tributário Nacional e atendimento das premissas postas pelo Constituinte reformador, que são simplicidade, transparência, justiça tributária e cooperação, é fundamental que a interpretação e a aplicação da legislação federal do IBS ocorram de forma homogênea em todo território nacional, integrada e cooperativa entre os entes federados.
O comitê gestor é o ambiente desenhado para esse papel. E a atuação conjunta da administração tributária e das procuradorias no Comitê será essencial para se alcançar a simplificação das relações.
O desenho da CBS/IBS foi idealizado para melhorar o ambiente de negócios, trazer segurança jurídica para o investidor e transparência para o contribuinte.
A Constituição prevê que a fiscalização, o lançamento, a cobrança e as representações administrativa e judicial do IBS serão realizados pelos Estados, Distrito Federal e Municípios, por meio de suas administrações tributárias e Procuradorias, conforme suas competências, cabendo ao Comitê Gestor apenas a “coordenação” – e não a realização – dessas atividades administrativas. Consta, ainda, no texto da Constituição que as competências próprias das carreiras da administração tributária e das Procuradorias serão exercidas, no âmbito do Comitê Gestor e na representação deste, por servidores efetivos integrantes dessas carreiras, o que reflete a garantia a autonomia da representatividade do ente, por se tratar de funções típicas de Estado.
Já existe uma proposta das Procuradorias para uniformizar a cobrança dos impostos neste novo modelo de Reforma Tributária?
O CONPEG (Colégio Nacional dos Procuradores-Gerais dos Estados e do DF) tem trabalhado no desenho da Reforma Tributária desde a tramitação da PEC 45. Assumimos, por indicação dos nossos pares, a incumbência de ser relatora do tema no Colegiado e temos participado da regulamentação da EC 132/23, integrando o Grupo de Assessoramento Jurídico no âmbito do Programa de Assessoramento Técnico do Ministério da Fazenda (PAT-RTC, que agora entra para a fase 2), participando das audiências públicas no Congresso Nacional e de grupos e encontros visando a debater com importantes atores esse tema, levando a realidade do nosso Estado e das Procuradorias em geral.
Dentre as propostas apresentadas pelo CONPEG está a efetiva participação da Advocacia Pública, conjuntamente com a administração tributária, na uniformização da interpretação da legislação do IBS dentro do Comitê Gestor e nos ambientes de harmonização desta legislação e da jurisprudência do IBS com a CBS (Contribuição sobre Bens e Serviços). A ausência de um bom desenho acerca dessa atuação conjunta pode impactar na simplificação das relações e trazer insegurança jurídica e, com isso, o aumento do contencioso judicial, em direção contrária aos pressupostos da Reforma.
Também estamos discutindo e formulando propostas acerca dos impactos da Reforma no contencioso administrativo e judicial, focados na racionalização dessa atuação, na eficiência, na redução da litigiosidade e na garantia de segurança jurídica ao setor produtivo, empresarial e no acesso a uma justiça tempestiva e adequada pelo jurisdicionado.
No período de transição, que começa em breve, como funcionará a cobrança, o serviço da dívida ativa?
A EC 132 estabeleceu a substituição de 5 tributos que incidem sobre o consumo, quais sejam IPI (Imposto sobre Produtos Industrializados), PIS (Programa de Integração Social), COFINS (Contribuição para o Financiamento de Seguridade Social), ICMS (Imposto sobre Circulação de Mercadorias e Prestação de Serviços de Transporte Interestadual e Intermunicipal) e ISS (Imposto Sobre Serviços), por dois tributos, o IBS e a CBS, e um imposto seletivo.
A transição para a unificação dos impostos – IBS e CBS – levará sete anos, de 2026 a 2032, com a extinção integral dos impostos atuais em 2033: IPI, PIS, COFINS, ICMS e ISS. Durante este período, a CBS federal terá inicialmente uma alíquota de 0,9%, em 2026, e o IBS estadual e municipal de 0,1%.
Em 2027, PIS e COFINS serão extintos e o IPI reduzido a zero. Em 2029, começará a redução gradual de ICMS e ISS, enquanto as alíquotas do IBS aumentarão para compensar a perda de arrecadação, encerrando em 2032. Em 2033, como acima anunciado, haverá a extinção total desses atuais tributos.
Há, ainda, na EC 132, o chamado regime de transição federativo que disciplina, para os próximos 50 anos, a forma de distribuição, aos entes subnacionais, do produto da arrecadação nacional do IBS. Lança-se ao futuro o retrato do passado para fins de disciplinar o rateio dos recursos com escopo de evitar perda repentina de arrecadação aos Estados mais produtores que consumidores.
Na esfera da regulamentação, as propostas caminham pela manutenção do controle da legalidade no âmbito das Procuradorias que já a realizam, como é o caso do nosso Estado, após a constituição definitiva do crédito tributário e seu encaminhamento à Procuradoria.
Apenas um dispositivo trazido pela EC 132 apresenta alteração da competência constitucionalmente atribuída aos órgãos do Poder Judiciário: o STF julgará os conflitos entre entes federativos, ou entre estes e o Comitê Gestor relacionados ao IBS e à CBS.
Quanto aos conflitos entre os entes federativos e os contribuintes relacionados ao IBS e à CBS, nada disse o legislador constituinte, de forma que se não houver alteração constitucional ou legal serão solucionados de acordo com as disposições constitucionais vigentes, considerando as regras processuais hoje utilizadas. A parte processual da Reforma Tributária ainda é um tema em debate.
O Refis deste ano tem tido bastante adesão? Teria números parciais?
O prazo inicial de adesão ao Refis foi prorrogado para o dia 13 de dezembro com a publicação da Lei n. 6.342, de 8 de novembro de 2024, dando continuidade a este programa que beneficia a população sul-mato-grossense.
O Refis visa facilitar a regularização dos créditos tributários relativos ao ICMS e ITCD, correspondentes a fatos geradores ocorridos até 31 de dezembro de 2023.
Um balanço parcial da Procuradoria de Controle da Dívida Ativa, setor com competência para atuar nos pedidos no âmbito do Refis, aponta a recuperação de créditos no valor de R$ 34 milhões, valor este que será lançado diretamente ao Tesouro Estadual. Trata-se de dados preliminares e que serão consolidados após o término do prazo de adesão.
A Lei prevê três formas de quitação para o ICMS, ITCD e a Contribuição relativa ao Fundersul. Os créditos tributários de ICMS e ITCD, constituídos ou não, inscritos ou não em dívida ativa, inclusive os ajuizados, em discussão administrativa ou judicial, podem ser liquidados de forma excepcional, com descontos significativos nas multas e nos juros de mora: à vista (Redução de 80% das multas e de 40% dos juros de mora); parcelamento em 2 a 20 vezes (Redução de 75% das multas e de 35% dos juros de mora); parcelamento em 21 a 60 vezes, e redução de 70% das multas e de 30% dos juros de mora. O parcelamento de contribuição relativa ao FUNDERSUL poderá ser feito de 2 a 36 parcelas, sem as reduções de multas e juros e com entrada de 5%.
A adesão ao Programa implicará na desistência de ações ou embargos às execuções fiscais que estão em curso no judiciário e de defesas e recursos administrativos. Com isso, temos uma redução da litigiosidade.
A PGE representou o Estado no acordo celebrado durante audiência no STF (Supremo Tribunal Federal) visando conter o conflito pela demarcação da Terra Indígena em Antônio João. Fale sobre esse momento histórico e o legado para o Estado.
Esse acordo só foi possível devido à união de esforços entre os diversos atores envolvidos na questão e liderança com diretrizes claras por parte do Governador Eduardo Riedel. A conciliação histórica selada com a presença de representantes dos proprietários, lideranças indígenas, integrantes da Funai (Fundação Nacional dos Povos Indígenas), da AGU (Advocacia-Geral da União), do Ministério dos Povos Indígenas, do ministro Gilmar Mendes, e sob as diretrizes do governador Eduardo Riedel, garante a paz na região e a segurança jurídica. Importante destacar, ainda, o trabalho coletivo da PGE, por meio de um GT constituído.
É um caso que envolve um conflito que é não apenas federativo, mas complexo em suas origens, cujas consequências são plurais e sistêmicas.
Participamos, juntamente com a Secretaria de Segurança Pública, de Cidadania e AGRAER, de uma audiência que durou mais de sete horas, em Brasília. E o que nós testemunhamos foi uma união de esforços entre a população indígena, não indígena, representantes da União e do Estado de Mato Grosso do Sul, que, embora não seja parte deste mandado de segurança, não mediu esforços para encontrar caminhos para a solução consensual. Com concessões mútuas, garantiu-se a paz nessa região e a estabilidade dessas relações jurídicas.
O acordo prevê o pagamento de indenização da União aos proprietários no valor de R$27,8 milhões a título das benfeitorias e de R$101 milhões pela terra nua. O Estado de Mato Grosso do Sul deverá ainda efetuar, em depósito judicial, o montante de R$16 milhões em favor da União.
A celebração do acordo também prevê a extinção, sem resolução de mérito, de todos os processos em tramitação no Judiciário que discutem os litígios envolvendo o conflito da demarcação desta Terra Indígena.