Em uma afronta à opinião pública, a Comissão de Constituição e Justiça (CCJ) da Câmara dos Deputados, em Brasília (DF), aprovou proposta de emenda à Constituição (PEC) que proíbe o aborto no Brasil até em casos previstos na lei, como o estupro, por exemplo. Tal projeto – que recebeu a alcunha de PEC dos Estupradores, não sem motivo – elimina qualquer resquício de liberdade de escolha de meninas e de mulheres em nosso País de serem mães quando vítimas de abusadores/agressores.
Ainda que não se tenha consenso sobre esse tema em nossa sociedade, nem fatos novos que justifiquem a volta da discussão de assunto infame, após ampla rejeição popular da iniciativa, fato é que a questão em tela é mais séria e grave do que aparenta ser.
Ocorre que, hoje, o abortamento legal é permitido em casos de estupro, de risco de vida para a gestante, bem como quando é constatada a anencefalia do feto. Com a proposta em discussão – caso siga adiante e se torne norma constitucional, o Brasil corre o risco de se equiparar a nações como Honduras, El Salvador, República Dominicana e Nicarágua, que incluem a proibição do aborto desde a concepção em suas constituições.
Os números desse tipo de crime em nosso País são estarrecedores. O Brasil registrou, somente em 2023, um estupro a cada seis minutos, totalizando 83.898 casos entre estupro e estupro de vulnerável, de acordo com o Anuário Brasileiro de Segurança Pública.
Salta aos olhos o fato de que 76% dessas ocorrências correspondam a estupros de vulneráveis, ou seja, quando há conjunção carnal ou outro ato libidinoso com menores de 14 anos, crianças ou incapazes de consentir o sexo, seja por deficiência, seja por falta de entendimento ou por enfermidade.
Se aprovada a iniciativa já chancelada pela CCJ, teremos no Brasil inegável banalização de outra modalidade de violência: a pedofilia. De conduta negativa e repugnante, o estuprador/agressor, de pedófilo, ainda passará a se denominar “pai” e, assim, exercer papel socialmente aprovado em nosso meio – inclusive, balizado pelos direitos e pelos deveres decorrentes do poder da instituição familiar.
E não menos importante: obrigar vítimas de um estupro ou que se encontrem em situação de perigo de vida a serem mães acarreta a revitimização de meninas e mulheres. Além do que, forçá-las a levar uma gravidez, uma gestação indesejada, adiante traz impactos psicológicos graves e, muitas vezes, irreversíveis. Isso inclui traumas adicionais ao crime cometido, estigmatização e dificuldades de integração social.
Há de se considerar ainda que a criminalização do aborto em casos de estupro pode potencializar a realização de procedimentos clandestinos, resultando, consequentemente, em complicações médicas graves e até em morte.
Em síntese: o Brasil não precisa punir vítimas, mas, sim, desenvolver políticas públicas efetivas de prevenção, de apoio e de desvitimização previstas no Estatuto da Vítima (Projeto de Lei nº 3.890/2020). O texto está parado no Congresso Nacional desde maio de 2023, por falta de vontade de políticos em abraçar, discutir e aprovar a questão.
Não é possível mais que se alegue desconhecimento e ignorância face aos efeitos nefastos da PEC dos Estupradores – sinônimo de retrocesso, um absurdo jurídico e inconstitucional, uma vez que é divorciado do que prevê nossa Carta Magna.
Aliás, o Brasil é signatário de diversos tratados internacionais de proteção aos direitos reprodutivos das mulheres. Logo, qualquer tentativa de criminalizar as hipóteses de aborto legal será um verdadeiro declínio em matéria dos direitos humanos fundamentais e da dignidade de mulheres e de meninas do nosso País.